"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

domingo, junho 23, 2019

FILARMÓNICAS: ESCOLAS POPULARES DE MÚSICA - MITOS E PRECONCEITOS


Da revista nº 25 de Abril de 2019, da Associação Aldraba, transcrevo este artigo de minha autoria:




Assistimos recentemente a uma comunicação de um professor universitário que, ao falar de cultura, enunciou o facto de no tempo do Estado Novo existir uma classificação de Alta Cultura e Cultura Popular. A dissertação visava o futuro do Cante, mas o palestrante alongou-se em considerações sobre a música operática, omitindo as bandas filarmónicas, enquanto fontes de aprendizagem e formação dos jovens, os quais acabam por ingressar nas orquestras sinfónicas, como é o caso da Gulbenkian, ou até de instituições europeias, onde a qualidade dos seus conhecimentos é apreciada e validada.



Susana Bilou Russo, na sua tese de mestrado em antropologia “As Bandas Filarmónicas Enquanto Património: Um Estudo de Caso no Concelho de Évora” (ISCTE, 2007), assegura que “é possível considerar qualquer prática musical como testemunho e património cultural da Sociedade onde está inserida”. (Russo; 2007:6)

Esta antropóloga salienta “o papel das Sociedades filarmónicas no ensino e divulgação da música dentro dos meios mais populares” (Ibidem: 12) evidenciando o facto de Michel Giacometti, Lopes Graça, Veiga de Oliveira e Jorge Dias não terem dado grande importância, nos seus estudos, às bandas filarmónicas.



Susana Bilou Russo dá grande relevância a Pedro Freitas, que, em 1946 escreveu a “História da Música Popular” abordando duzentas bandas, mostrando aquela obra o carácter associativo, que valoriza a comunidade e a música popular das filarmónicas, vistas por dentro através do espírito crítico de um filarmónico que valorizou o povo, enquanto protagonista da cultura popular.

O trabalho das bandas civis “é uma prática musical que está enraizada no ouvido popular que a canta e sente” (Freitas, 1946:29).

Para Susana Russo, com o liberalismo, novos direitos (de reunião e associação) originaram a Sociedade Filarmónica fundada por Domingos Bomtempo, em 1822, que terá sido o embrião das associações musicais de cariz popular que se formaram na segunda metade do século XIX, distinguindo-se das bandas militares.

Abertas à participação universal, unificavam e atenuavam através de uma farda, as classes sociais dos executantes.



Nas conclusões da sua investigação, Susana Bilou Russo considera que o seu estudo “acaba por integrar as bandas filarmónicas como um objecto inovador, na medida em que o seu valor patrimonial se espelha na fusão entre duas realidades que contribuem para a sua própria formação e dinamização. Através deste trabalho, concluímos que a prática filarmónica não é caracteristicamente urbana, mas também não exclusivamente rural, não é de todo tradicional, mas também não se confina a uma prática erudita, ou seja, estamos a abordar um objecto que define o seu estatuto dentro de um terreno que flutua entre dois mundos que cada vez mais têm atenuadas as suas fronteiras, influenciando-se mutuamente o que faz da prática filarmónica um interessante objecto de abordagem que nos permite fazer um exercício interpretativo sobre o modo como são reformuladas e revitalizadas no presentes as práticas que se reportam ao passado.  (Ibidem: 136).



“À Sombra de um Passado por Contar: A banda de música de Santiago de Riba-Ul”, dissertação de doutoramento de Helena Marisa Matos Lourosa, foi apresentada na Universidade de Aveiro, Departamento de Comunicação e Arte, cinco anos depois do estudo de Susana Russo.

Neste trabalho académico, recorda-se que as bandas militares terão tido origem nos músicos de sopro e percussão, que integravam agrupamentos de militares, a partir do século XVI.

Helena Lourosa afirma que existem cerca de oitocentas bandas em Portugal (Lourosa, 2012:74) abordando na sua investigação a questão do mito fundacional das bandas, detendo-se no caso daquela que é considerada a mais antiga do país, desmontando alguma efabulação, que foi causada a partir da leitura precipitada da documentação histórica da colectividade, argumentando a investigadora que a antiguidade da banda de Santiago de Riba-Ul se apoia em personagens mencionados nos testemunhos escritos, pelo que a data da criação da banda não pode corresponder à verdade. Diz ela: “A possibilidade de ler “diferentes datas” [num] manuscrito foi aproveitada pela banda de Santiago de Riba-Ul como forma de poder ampliar a sua ancestralidade.” (Ibidem: 148) Helena Lourosa realça: Com o conhecimento que hoje temos sobre a história da música em Portugal, e também com o cruzamento de dados e a própria inquirição que naturalmente fazemos hoje à história, torna-se evidente que a data de 1722 não poderia nunca corresponder à data do manuscrito autógrafo. Em primeiro lugar porque António da Silva Leite [compositor] nasceu em 1759, e depois porque a princesa Carlota Joaquina, a quem é dedicada a obra, nasceu em 1775, tendo vindo a casar-se com o rei D. João VI de Portugal com apenas 10 anos em 1785. “



Esta autora no final da sua importantíssima tese, conclui: “Ao iniciar a minha investigação com um estudo de caso, vi nesta pesquisa a oportunidade de contribuir, de forma mais abrangente, para o conhecimento do meio filarmónico português (…) O uso dos acervos das bandas é, em meu entender, um instrumento de enorme relevância para o estudo deste campo institucional desde que analisado a partir de uma perspetiva intertextual. Só assim poderemos redescobrir a história, inquirir a memória semântica e estabelecer uma aproximação mais coerente com o passado. (…) Expandir esta metodologia de trabalho permitir-nos-á aceder a um conhecimento mais sólido sobre a vida musical intensa que esteve durante pelo menos dois séculos nas mãos de músicos amadores. Foram eles que ajudaram a concretizar e a consolidar um tipo de agrupamento que ainda hoje, em alguns contextos, mantém a designação que porventura melhor o define: a música.” (Ibidem: pp.253-254)



Estes contributos académicos, que finalmente ousaram interpelar a história e a função social das bandas filarmónicas, enriqueceram o conhecimento geral sobre um património que é transversal e movimenta milhares de indivíduos, nos corpos sociais como no ensino e na aprendizagem da música, ao alcance de todos.

Quisemos falar com cidadãos ligados a este movimento, para completar este breve olhar acerca dos músicos que animam largos, coretos, teatros, festividades religiosas e profanas.

Aos 76 anos de idade Joaquim Barata Silva[1], Presidente da Direcção da Sociedade Filarmónica União e Capricho Olivalense, “com quarenta anos ininterruptos como dirigente da SFUCO”, revela “tenho mais anos de dirigente que o Pinto da Costa. Não ganhei campeonatos europeus e não recebi nem escudos nem euros.”

Joaquim Silva, na breve conversa que entabulámos, lembrou que os alunos do Conservatório Nacional “começaram todos nas escolas das Bandas Filarmónicas.”

Alberto Pereira Ramos[2], dirigente associativo durante toda uma vida, falou-nos assim da Banda da Academia Almadense, que este ano festeja os 124 anos: “Depois do 25 de Abril, a banda estava semi-desfeita e parou durante um ano. Reabriu renovada com uma quantidade de miúdos na rua a tocar. Desfilou sempre.”

Pereira Ramos evidencia que no concelho de Almada existem quatro bandas: Incrível, Academia, SFUAP e Trafariense. “Todas vivas!”

Este sábio do Associativismo revela que “Quando foi das invasões, os franceses tinham por hábito acompanhar o exército com charangas musicais. Levaram daqui músicos (havia grupos de cidadãos que se juntavam para executar música). A partir daí terá surgido a banda de Santiago Riba-Ul.” E acrescenta ao seu testemunho, uma confidência. Pereira Ramos conta que Pedro Freitas “queimou o resto da edição da “História da Música Popular” no seu quintal do Barreiro por não se ter vendido.”

Curiosamente, passado mais de meio século, essa obra de referência para os investigadores do fenómeno filarmónico, é citada em duas teses académicas, sendo suporte dos estudos anteriormente referidos.



Sobre este incontornável (e identitário) património muito há ainda para estudar.

A Aldraba, com este artigo quer chamar a atenção para o manancial de saberes que a Música guarda, enquanto espelho das comunidades e dos construtores de Futuro, que são os componentes das Filarmónicas, - Dirigentes, Maestros e Executantes.

Portugal é um país rico nesta prática, que tanto contribui para a Cultura da sua população. A fruição da Música eleva o espírito e torna os seres humanos mais aptos para a Sociabilidade, à luz dos ensinamentos da Revolução de 1789: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.



Luís Filipe Maçarico (texto) Rui Elias (fotografias)



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


(consultada em Abril de 2019. Acedida várias vezes)


(consultada em Abril de 2019. Acedida várias vezes)



[1] Depoimento em Abril de 2019.
[2] Depoimento em 27-4-2019.

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