"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, maio 30, 2022

EM ALVALADE-SADO CELEBRANDO A VIDA E A OBRA DE EDUARDO OLÍMPIO

 









Não vislumbro nem conheci um Poeta com a energia criativa e o sorriso definidores de Eduardo Olímpio, enquanto Ser Humano que sente prazer em produzir regularmente quadras, poemas, reflexões acerca da vida em verso, fazendo desse ofício diário a sua respiração, o sentido para prosseguir a caminhada de quase nove décadas, celebrando sempre o milagre da sua presença entre nós.
Esta Alvalade-Sado, sua terra natal acolhe este seu conterrâneo com a merecida sensibilidade e impulso festivos.
É vasto e de enorme riqueza popular o legado do Poeta, que cantou o Alentejo de forma ímpar, criando 326 letras para canções eternas, poesia que andou de boca em boca, antes e depois da Revolução dos cravos, divulgado por cantores de várias gerações, como Manuel Freire em 1965, que não desdenham espalhar ao vento a sua Celebração da Terra, que anseia mais Pão, mais Fraternidade, mais azul no horizonte desmedido de um território onde Urbano Tavares Rodrigues e Manuel da Fonseca também evocaram lutas e sonhos. Felizmente e merecidamente lembrados!
Há títulos que o nome de Eduardo Olímpio reanima, como "António dos Olhos Tristes" e "Um Girassol chamado Beatriz".
E volumes poéticos, que não se evaporam ao evocá-lo.
Em Portugal não abundam estes casos felizes de valorizar vidas e obras em vida, dos autores homenageados.
Saúdo por isso a Junta de Freguesia de Alvalade-Sado por esta tão envolvente e justa iniciativa!
Com grande orgulho por vivenciar esta cerimónia, desloquei-me a Alvalade- Sado, onde o Poeta foi filmado pelo neto Mário Espada - cineasta promissor - dizendo um poema sobre os companheiros da infância que da lei da vida se foram libertando...
Quis participar neste dia especial, deixar o meu depoimento acerca da leitura, que tanto enriqueceu o que também eu fui escrevendo sobre o Mundo e o Sul.
Recebo habitualmente o poema mais recente, a publicação mais nova, um título corrigido, com páginas acrescentadas ou emendadas.
Sempre surpreendente. Sempre moderno. Sempre pertinente.
Há poucas semanas reinventou, em versão livre, a "História da Carochinha e do João Ratão", desafiando-me a rabiscar umas ilustrações que nos divertiram pela puerilidade que entrelaça textos e traços.
Este companheirismo vem de tempos imemoriais, quando integrámos uma colectânea com José Jorge Letria e Ary dos Santos.
Prosseguiu depois em periódicos alentejanos, onde o Eduardo recebia versos meus e uma bonecragem originada na limpeza de aparos de canetas de tinta permanente preta.
Há caminhos que têm o selo da Amizade. É o nosso caso!
São muitos e bons anos, sempre a inovar - sobretudo por parte do incansável Mestre.
Termino citando - porque sei o quanto o Eduardo Olímpio gostou da ideia - o que escrevi no nº 30 da revista "Aldraba" da Associação do Espaço e Património Popular.
Estamos na presença do "Poeta que semeou mais luz, dentro da Luz!"
Bem Hajas, Amigo, por tudo o que o teu talento deu a Portugal e particularmente a este Alentejo que te viu nascer!
(Intervenção de Luís Filipe Maçarico, em 28-5-2022, na Casa do Povo de Alvalade-Sado, durante a iniciativa "Tributo a Eduardo Olímpio")
Fotos de LFM

SOBRE O LIVRO "NO FIM DE UM LUGAR" DE FERNANDO CHAGAS DUARTE

 






"Comovo-me em excesso,/ por Natureza e por Ofício./ Acho medonho alguém/ viver sem paixões"//
                                                                Graciliano Ramos

À medida que ia desbravando os textos que constituem esta primeira incursão de Fernando Duarte na prosa, espalhavam-se no meu imaginário cores quentes e personagens que remontam para leituras de autores sul-americanos e vivências moçambicanas e cabo-verdianas. E até o onírico de imagens cinematográficas.

Reencontrei nestas páginas figuras que desfilaram entre a Ilha- património da Humanidade que cintila no Índico, onde Camões aportou e o Mindelo-creoulo das mornas, largos e lojinhas, de caminhos repletos da cor da existência.
Surgem então o retratista, o circo e tantas situações que integram uma galeria, cuja abordagem fica na memória pela caracterização e riqueza de gestos, diálogos e pensamentos. Pelo tom encantatório, pela toada neo-realista.

Estamos perante uma literatura, que se baseia na recolha de vários episódios de uma história de vida, enquanto matéria de realidade ficcionada.

O autor teve recentemente o privilégio de trilhar alguns dos locais acedidos oralmente, nas diversas horas gravadas de relatos sobre os quais laborou; da favela à Metropolis (a fazer lembrar o expressionismo alemão de Fritz Lang) passando por jóias da coroa como Paraty, tendo realizado ainda incursões em Copacabana e Curitiba, o Brasil imaginado ficou mais próximo, embora com décadas de distância face aos enredos reportados.

O que me surpreende neste livro de Fernando Duarte é a aproximação literária a um destino de superação, de enfrentamento dos inúmeros obstáculos, da rebeldia descrita - patente na fisga que a rapariga exibe na capa da obra, onde vislumbramos aspectos do realismo mágico de romancistas de referência.

O que vale nesta colecção de narrativas é o fresco de uma terra com personagens carismáticas, ocorrendo-me o povoamento de lugares distantes, onde uma multidão de indivíduos tenta sobreviver, negociando, laborando incansavelmente.
Não posso deixar de acrescentar a forma dramática, quase teatral de intervir de uma figura de antologia, quase filósofa, como Catabriga.
Quanto à ida para São Paulo, sublinho a ambiência fílmica, que me recorda Dino Risi, Luchino Visconti ou Fellini, por via do carrocel de situações e intervenientes surrealizantes.
A cidade - babel muito bem descrita, da asfixia do interior ao âmago de outra asfixia.

Por fim, dizer que há uma profunda reflexão acerca da existência, sendo usado por vezes um vocabulário requintado, ficando a curiosidade de saber como moldou o escritor na sua oficina a linguagem da sua informante, recriando os diversos retratos que espelham a actividade de um povo comum, no fim de um lugar.
Esse lugar criado e alimentado por visionários, que assim foram construíndo um país, na sua multiculturalidade, reformulando territórios e fronteiras.

De leitura obrigatória para quem deseja percepcionar tanto o Brasil contemporâneo como o Brasil de antanho, no confronto e cruzamento de conceitos e horizontes, este livro de Fernando Duarte marca pela ousadia, consistência e modernidade.

Luís Filipe Maçarico (texto) 16-4-2022
AIV (fotografias)