"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, maio 30, 2022

SOBRE O LIVRO "NO FIM DE UM LUGAR" DE FERNANDO CHAGAS DUARTE

 






"Comovo-me em excesso,/ por Natureza e por Ofício./ Acho medonho alguém/ viver sem paixões"//
                                                                Graciliano Ramos

À medida que ia desbravando os textos que constituem esta primeira incursão de Fernando Duarte na prosa, espalhavam-se no meu imaginário cores quentes e personagens que remontam para leituras de autores sul-americanos e vivências moçambicanas e cabo-verdianas. E até o onírico de imagens cinematográficas.

Reencontrei nestas páginas figuras que desfilaram entre a Ilha- património da Humanidade que cintila no Índico, onde Camões aportou e o Mindelo-creoulo das mornas, largos e lojinhas, de caminhos repletos da cor da existência.
Surgem então o retratista, o circo e tantas situações que integram uma galeria, cuja abordagem fica na memória pela caracterização e riqueza de gestos, diálogos e pensamentos. Pelo tom encantatório, pela toada neo-realista.

Estamos perante uma literatura, que se baseia na recolha de vários episódios de uma história de vida, enquanto matéria de realidade ficcionada.

O autor teve recentemente o privilégio de trilhar alguns dos locais acedidos oralmente, nas diversas horas gravadas de relatos sobre os quais laborou; da favela à Metropolis (a fazer lembrar o expressionismo alemão de Fritz Lang) passando por jóias da coroa como Paraty, tendo realizado ainda incursões em Copacabana e Curitiba, o Brasil imaginado ficou mais próximo, embora com décadas de distância face aos enredos reportados.

O que me surpreende neste livro de Fernando Duarte é a aproximação literária a um destino de superação, de enfrentamento dos inúmeros obstáculos, da rebeldia descrita - patente na fisga que a rapariga exibe na capa da obra, onde vislumbramos aspectos do realismo mágico de romancistas de referência.

O que vale nesta colecção de narrativas é o fresco de uma terra com personagens carismáticas, ocorrendo-me o povoamento de lugares distantes, onde uma multidão de indivíduos tenta sobreviver, negociando, laborando incansavelmente.
Não posso deixar de acrescentar a forma dramática, quase teatral de intervir de uma figura de antologia, quase filósofa, como Catabriga.
Quanto à ida para São Paulo, sublinho a ambiência fílmica, que me recorda Dino Risi, Luchino Visconti ou Fellini, por via do carrocel de situações e intervenientes surrealizantes.
A cidade - babel muito bem descrita, da asfixia do interior ao âmago de outra asfixia.

Por fim, dizer que há uma profunda reflexão acerca da existência, sendo usado por vezes um vocabulário requintado, ficando a curiosidade de saber como moldou o escritor na sua oficina a linguagem da sua informante, recriando os diversos retratos que espelham a actividade de um povo comum, no fim de um lugar.
Esse lugar criado e alimentado por visionários, que assim foram construíndo um país, na sua multiculturalidade, reformulando territórios e fronteiras.

De leitura obrigatória para quem deseja percepcionar tanto o Brasil contemporâneo como o Brasil de antanho, no confronto e cruzamento de conceitos e horizontes, este livro de Fernando Duarte marca pela ousadia, consistência e modernidade.

Luís Filipe Maçarico (texto) 16-4-2022
AIV (fotografias)


1 comentário:

Anónimo disse...

Que texto elucidativo! Parabéns Luís 😘 Madalena Borralho