Transcrevo da recente edição da revista da Casa do Alentejo (nº 45, Junho/Novembro de 2019, páginas 38 e 39) o artigo em epígrafe:
Em
entrevistas, ou nos seus escritos, Eugénio de Andrade (nascido a 19 de Janeiro
de 1923, na aldeia da Póvoa de Atalaia, concelho do Fundão) manifestou
afinidade - por via das influências mediterrânicas da sua Poesia - com o sul e
particularmente com o Alentejo. Há registo de ter afirmado que a sua pertença
identitária se integrava numa terra que prolongava o Alentejo na Beira Baixa,
seguindo assim o que o Professor Orlando Ribeiro escreveu na obra “Portugal o
Mediterrâneo e o Atlântico”
O
seu convívio com grandes vultos da Cultura e das Ciências Sociais, como Sophia
de Mello Breyner Anderson ou o etnólogo Veiga de Oliveira, contribuíram para a
consolidação dessa matriz.
Em
1997, com a chancela da Câmara Municipal de Beja e da Fundação Eugénio de
Andrade foi publicado o livro de versos e prosa poética “Alentejo”.
Nessa
obra, podemos ler frases e estrofes como estas:
“o
branco obstinado” (p.5) , “a marca do fogo no avesso da pele” (p.9), “o descampado, os sulcos da sede” (Ibidem), “um
delírio de luz sobe à cabeça, com a música das cigarras” (p.13). “O que me
fascina aqui é uma conquista do espírito sem paralelo no resto do país, numa
palavra: um estilo. O melhor do Alentejo é uma liberdade que escolheu a ordem,
o equilíbrio” (p. 13), “Povertá[1]
é talvez a palavra ajustada a uma estética alheia ao excesso, ao desmedido (…)
Ao luxo prefere-se a modéstia (…) Não se nasce impunemente no Alentejo” (p.14).
“Meu coração, Alentejo de orvalho” (p. 31). “Nasci na Beira, em terras interiores
que prolongam o Alentejo. (…) tenho a nostalgia do sul” (p. 47).
Na
evocação do olhar de Eugénio de Andrade sobre o Alentejo, transcrevo um texto
belíssimo que enche de orgulho os que amam o sul e, talvez por isso, exija de
todos os alentejanos que nunca deixem de contribuir para reforçar a sua identidade
que o Poeta tão bem enaltece.
Luís Filipe Maçarico
“No
Alentejo, em fins de Julho ou princípios de Agosto, o olhar atinge o seu
zénite. No horizonte raso e limpo tudo parece pegado à terra: muros, árvores,
medas de palha, montes, quando se avistam distantes. Um delírio de luz sobe à
cabeça, como a música das cigarras, e faz doer. As coisas todas estalam como
romãs maduras, e ficam cheias de brilhos. Mesmo dentro de casa, com portas e
janelas trancadas, a luz entra pelas frestas, entorna-se pelas tijoleiras e
reflecte-se, tenuemente rosada, na brancura das paredes. No pátio, uma oculta água
ergue-se num repuxo exíguo - e é pura delícia. Cheira a barro e a cal, cheira a
coentros e a queijo seco. Cheira ao que é da terra e regressa à terra. Um som
de guizos, o trote miúdo das mulas, o grito de uma criança, custam a
distinguir, de tão longe vêm. Neste longo, ardente verão do sul apenas as
cigarras têm modulações amplas. À roda tudo é silêncio e secura. Os próprios
homens quase não têm fala, mas os seus olhos queimam como duas pedras expostas
ao sol durante milhares de dias. Só eles afirmam que nem tudo no Alentejo nasce
e morre acachapado à terra. Eles, e uns pombos bravos que subitamente rasgam o
céu, como quem foge ao áspero, ardido, amargo coração do meu país.
Falei
da luz do Alentejo, mas não é ela que verdadeiramente me liga e religa a esta
terra: é demasiado ácida, falta-lhe uma doçura última, mediterrânea, que só
encontraremos mais a sul. O que me fascina aqui é uma conquista do espírito sem
paralelo no resto do país, numa palavra: um estilo. O melhor do Alentejo é uma
liberdade que escolheu a ordem, o equilíbrio. Estas formas puras, sóbrias de
linha e de cor, que vão da paisagem à arquitectura, da arquitectura ao
vestuário, do vestuário ao cante, são a expressão de um espírito terreno cioso
de limpidez, capaz da suprema elegância de ser simples. Povertà é
talvez a palavra ajustada a uma estética alheia ao excesso, ao desmedido, ao
espectacular. Ao luxo prefere-se a modéstia; à anarquia, o rigor; à paixão, um
concentrado amor. O Alentejo é inimigo do barroco em nome da claridade. Mundo
cerrado (quase apetecia escrever: encarcerado), sem dúvida; mas dos seus
limites tira o alentejano a força. O seu olhar, na impossibilidade de ir mais
longe, irá cada vez mais fundo, e o que lhe sai das mãos é fruto de uma
paisagem enxuta, quase hirta, de uma magreza reduzida ao osso. Uma paisagem
essencial, de que pode orgulhar-se um homem, quando lhe reflecte o rosto ou a alma.”
Eugénio
de Andrade, Alentejo (1997).
[1] Creio que Povertá define (por oposição ao excesso e ao luxo) o despojamento.
O próprio Eugénio escreveu que “Vitorino Nemésio (…) a propósito de um dos meus
primeiros livros, falou em estética da povertà
e apologia do desprendimento. (.,). Uma tal estética não podia, naturalmente,
deixar de me aproximar cada vez mais de uma linguagem substantiva, magra, seca,
e a tornar-me odiosas todas as formas de exibicionismo, a começar pelas
culturais.” (Andrade, 1993: 129-130)
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