Da revista nº 25 de Abril de 2019, da Associação Aldraba, transcrevo este artigo de minha autoria:
Assistimos recentemente a uma comunicação
de um professor universitário que, ao falar de cultura, enunciou o facto de no tempo
do Estado Novo existir uma classificação de Alta Cultura e Cultura Popular. A
dissertação visava o futuro do Cante, mas o palestrante alongou-se em
considerações sobre a música operática, omitindo as bandas filarmónicas, enquanto
fontes de aprendizagem e formação dos jovens, os quais acabam por ingressar nas
orquestras sinfónicas, como é o caso da Gulbenkian, ou até de instituições
europeias, onde a qualidade dos seus conhecimentos é apreciada e validada.
Susana Bilou Russo, na sua tese de
mestrado em antropologia “As Bandas Filarmónicas Enquanto Património: Um Estudo
de Caso no Concelho de Évora” (ISCTE, 2007), assegura que “é possível
considerar qualquer prática musical como testemunho e património cultural da
Sociedade onde está inserida”. (Russo; 2007:6)
Esta antropóloga salienta “o papel das
Sociedades filarmónicas no ensino e divulgação da música dentro dos meios mais
populares” (Ibidem: 12) evidenciando o facto de Michel Giacometti, Lopes Graça,
Veiga de Oliveira e Jorge Dias não terem dado grande importância, nos seus
estudos, às bandas filarmónicas.
Susana Bilou Russo dá grande relevância a
Pedro Freitas, que, em 1946 escreveu a “História da Música Popular” abordando
duzentas bandas, mostrando aquela obra o carácter associativo, que valoriza a
comunidade e a música popular das filarmónicas, vistas por dentro através do
espírito crítico de um filarmónico que valorizou o povo, enquanto protagonista
da cultura popular.
O trabalho das bandas civis “é uma prática
musical que está enraizada no ouvido popular que a canta e sente” (Freitas,
1946:29).
Para Susana Russo, com o liberalismo,
novos direitos (de reunião e associação) originaram a Sociedade Filarmónica
fundada por Domingos Bomtempo, em 1822, que terá sido o embrião das associações
musicais de cariz popular que se formaram na segunda metade do século XIX, distinguindo-se
das bandas militares.
Abertas à participação universal,
unificavam e atenuavam através de uma farda, as classes sociais dos
executantes.
Nas conclusões da sua investigação, Susana
Bilou Russo considera que o seu estudo “acaba por integrar as bandas
filarmónicas como um objecto inovador, na medida em que o seu valor patrimonial
se espelha na fusão entre duas realidades que contribuem para a sua própria
formação e dinamização. Através deste trabalho, concluímos que a prática
filarmónica não é caracteristicamente urbana, mas também não exclusivamente
rural, não é de todo tradicional, mas também não se confina a uma prática
erudita, ou seja, estamos a abordar um objecto que define o seu estatuto dentro
de um terreno que flutua entre dois mundos que cada vez mais têm atenuadas as
suas fronteiras, influenciando-se mutuamente o que faz da prática filarmónica
um interessante objecto de abordagem que nos permite fazer um exercício
interpretativo sobre o modo como são reformuladas e revitalizadas no presentes
as práticas que se reportam ao passado. (Ibidem:
136).
“À Sombra de um Passado por Contar: A banda
de música de Santiago de Riba-Ul”, dissertação de doutoramento de Helena Marisa
Matos Lourosa, foi apresentada na Universidade de Aveiro, Departamento de
Comunicação e Arte, cinco anos depois do estudo de Susana Russo.
Neste trabalho académico, recorda-se que
as bandas militares terão tido origem nos músicos de sopro e percussão, que
integravam agrupamentos de militares, a partir do século XVI.
Helena Lourosa afirma que existem cerca de
oitocentas bandas em Portugal (Lourosa, 2012:74) abordando na sua investigação
a questão do mito fundacional das bandas, detendo-se no caso daquela que é
considerada a mais antiga do país, desmontando alguma efabulação, que foi
causada a partir da leitura precipitada da documentação histórica da
colectividade, argumentando a investigadora que a antiguidade da banda de
Santiago de Riba-Ul se apoia em personagens mencionados nos testemunhos
escritos, pelo que a data da criação da banda não pode corresponder à verdade.
Diz ela: “A possibilidade de ler “diferentes datas” [num] manuscrito foi
aproveitada pela banda de Santiago de Riba-Ul como forma de poder ampliar a sua
ancestralidade.” (Ibidem: 148) Helena Lourosa realça: “Com
o conhecimento que hoje temos sobre a história da música em Portugal, e também
com o cruzamento de dados e a própria inquirição que naturalmente fazemos hoje
à história, torna-se evidente que a data de 1722 não poderia nunca corresponder
à data do manuscrito autógrafo. Em primeiro lugar porque António da Silva Leite
[compositor] nasceu em 1759, e depois porque a princesa Carlota Joaquina, a
quem é dedicada a obra, nasceu em 1775, tendo vindo a casar-se com o rei D.
João VI de Portugal com apenas 10 anos em 1785. “
Esta autora no final da sua
importantíssima tese, conclui: “Ao iniciar a minha investigação com um estudo
de caso, vi nesta pesquisa a oportunidade de contribuir, de forma mais
abrangente, para o conhecimento do meio filarmónico português (…) O uso dos
acervos das bandas é, em meu entender, um instrumento de enorme relevância para
o estudo deste campo institucional desde que analisado a partir de uma
perspetiva intertextual. Só assim poderemos redescobrir a história, inquirir a
memória semântica e estabelecer uma aproximação mais coerente com o passado.
(…) Expandir esta metodologia de trabalho permitir-nos-á aceder a um
conhecimento mais sólido sobre a vida musical intensa que esteve durante pelo
menos dois séculos nas mãos de músicos amadores. Foram eles que ajudaram a
concretizar e a consolidar um tipo de agrupamento que ainda hoje, em alguns
contextos, mantém a designação que porventura melhor o define: a música.” (Ibidem: pp.253-254)
Estes contributos académicos, que
finalmente ousaram interpelar a história e a função social das bandas
filarmónicas, enriqueceram o conhecimento geral sobre um património que é
transversal e movimenta milhares de indivíduos, nos corpos sociais como no
ensino e na aprendizagem da música, ao alcance de todos.
Quisemos falar com cidadãos ligados a este
movimento, para completar este breve olhar acerca dos músicos que animam
largos, coretos, teatros, festividades religiosas e profanas.
Aos 76 anos de idade Joaquim Barata Silva[1],
Presidente da Direcção da Sociedade Filarmónica União e Capricho Olivalense,
“com quarenta anos ininterruptos como dirigente da SFUCO”, revela “tenho mais
anos de dirigente que o Pinto da Costa. Não ganhei campeonatos europeus e não
recebi nem escudos nem euros.”
Joaquim Silva, na breve conversa que
entabulámos, lembrou que os alunos do Conservatório Nacional “começaram todos
nas escolas das Bandas Filarmónicas.”
Alberto Pereira Ramos[2],
dirigente associativo durante toda uma vida, falou-nos assim da Banda da
Academia Almadense, que este ano festeja os 124 anos: “Depois do 25 de Abril, a
banda estava semi-desfeita e parou durante um ano. Reabriu renovada com uma
quantidade de miúdos na rua a tocar. Desfilou sempre.”
Pereira Ramos evidencia que no concelho de
Almada existem quatro bandas: Incrível, Academia, SFUAP e Trafariense. “Todas
vivas!”
Este sábio do Associativismo revela que
“Quando foi das invasões, os franceses tinham por hábito acompanhar o exército
com charangas musicais. Levaram daqui músicos (havia grupos de cidadãos que se
juntavam para executar música). A partir daí terá surgido a banda de Santiago
Riba-Ul.” E acrescenta ao seu testemunho, uma confidência. Pereira Ramos conta
que Pedro Freitas “queimou o resto da edição da “História da Música Popular” no
seu quintal do Barreiro por não se ter vendido.”
Curiosamente, passado mais de meio século,
essa obra de referência para os investigadores do fenómeno filarmónico, é
citada em duas teses académicas, sendo suporte dos estudos anteriormente
referidos.
Sobre este incontornável (e identitário)
património muito há ainda para estudar.
A Aldraba, com este artigo quer chamar a
atenção para o manancial de saberes que a Música guarda, enquanto espelho das
comunidades e dos construtores de Futuro, que são os componentes das Filarmónicas,
- Dirigentes, Maestros e Executantes.
Portugal é um país rico nesta prática, que
tanto contribui para a Cultura da sua população. A fruição da Música eleva o
espírito e torna os seres humanos mais aptos para a Sociabilidade, à luz dos
ensinamentos da Revolução de 1789: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Luís Filipe Maçarico (texto) Rui Elias (fotografias)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(consultada em Abril de 2019. Acedida
várias vezes)
(consultada em Abril de 2019. Acedida
várias vezes)