No passado dia 29 de Outubro, foi lançado na Casa do Alentejo, com uma numerosa assistência, o 22º livro de Poesia de Luís Filipe Maçarico.
Vera Inácio Cordeniz, cantora lírica, com o jovem pianista Thiago Tortaro, iniciaram a sessão, com grande agrado dos presentes. Depois, Rosa Calado, da direcção da CA saudou o público e caracterizou o perfil humano e artístico do autor aniversariante (66º aniversário). Maria José Balancho apresentou a obra (texto na íntegra a seguir), Flávio Gil, actor, poeta, associativista, disse poesia do livro, o poeta fez uma intervenção e, antes dos autógrafos, deu a palavra aos leitores, interessados em declamar versos deste novo título. Pelas reacções recebidas na ocasião e posteriormente por telefone e ou email, "Uma Casa é Como Uma Árvore Por Dentro" deixou boa energia e satisfação, pela interacção conseguida, naquela segunda feira chuvosa e fria.
“UMA
CASA É COMO UMA ÁRVORE POR DENTRO”
de
Luís Filipe Maçarico
Meu amigo Luís:
Atrevo-me a chamar-te amigo porque, desde
que nos conhecemos, que os “nossos santos se cruzaram”, sem sabermos ainda o
como ou porquê.
Aconteceu numa noite em Pias, no Alentejo,
numa noite mágica e quente em que a poesia foi protagonista e as palavras, as
sílabas e os sons se conjugavam em simbioses e sinestesias com a natureza do
momento.
Foi tudo tão simples e tão forte (a magia
das pequenas coisas): parecia que as almas se “tocavam” e se “trocavam”, num
prazer quase absoluto naquela simbologia poética de uma noite de verão.
A nossa amizade começou por aí…
Em raros encontros e alguns telefonemas,
percebemos que o timbre das nossas vozes e sensibilidades soava tão próximo,
quase em uníssono. Nesse momento, conhecemo-nos melhor: sentimos as mesmas
raízes crescendo dentro de nós e os mesmos valores a acotovelarem-se numa
cumplicidade quase ancestral.
E agora apareceste, também num dia quente
de verão, e colocaste nas minhas mãos o teu último livro, como se fosse um
filho, para que eu o lesse e cuidasse dele.
“Uma casa é como uma árvore por dentro”
Gostei muito do título e senti-o como a
síntese primeira desta obra.
A capa, de Marta Barata, a alma gémea
deste livro.
Ao ler cada poema, quase sem querer, fui
analisando as palavras, as imagens, as metáforas, a fonética e senti-me levada
no deambular constante que imprimes à tua poesia. Perdi-me no labirinto deste
vai e vem constante que todos os poemas indiciam.
Mas tudo tem uma lógica, até mesmo a
Poesia, ainda que as conotações se confundam. Precisei de encontrar uma frase
ou uma expressão que condensasse toda a obra, para que eu a pudesse ler como um
todo. Os teus poemas, que eu lia e relia com tanto prazer, continuavam a desafiar-me.
De repente, deparei-me com o último livro
de Mia Couto cujo título é “O Bebedor de Horizontes”. Voilá! Nesse momento
senti que tinha chegado à essência do Poeta, à tua essência Luís. Penso ter
compreendido, finalmente, a sede do teu constante partir e do teu constante
chegar e ficar, permanecer.
Ficas porque é na “casa”, no ninho que te
aconchegas, que meditas, que te reinventas, que recuperas forças para novas
caminhadas. Partes, então, pelos ramos longos da tua árvore, levas raízes,
folhas e frutos, e partes, sim, com a ânsia de quem tem sede, à procura doutros
sonhos em diferentes horizontes.
A tua poesia adquire, por vezes, um
movimento impaciente que desafia o tempo e o espaço, entre o ir e o voltar.
Quando regressas a casa e nela permaneces,
usas palavras mais suaves, vogais fechadas, ditongos, sons nasalados, verbos no
gerúndio que adoçam as frases e alongam o tempo - o tempo do pensar, do
amadurecer.
NÚMERO
VINTE E SEIS
Na implacável contabilidade
Das noites onde envelheço,
À janela da velha casa
Entre as brisas de Junho e
Os nevoeiros de Dezembro
Permaneço.
Esperando o quê?
Cicatrizando mágoas. Ausências,
O peso do tempo,
Escutando o vento…
À janela da velha casa
Eu venço!
Acima de tudo
Procuro o verso
Onde respira o Mundo
E permaneço.
Quando partes em deambulações por Lisboa
ou agarras o verão com todos os sentidos, a tua poesia ganha a sensualidade dos
locais, das experiências, das paixões, numa embriaguez Beaudelairiana (no poema
Ivresse)… “Il faut être toujours ivre: de vin, de poesie ou de vertue, à votre
guise, mais enivrez vous!”
Mas regressas ao ninho, sempre, onde as
lembranças te assaltam, as memórias te perseguem e o passado te atormenta.
E, voltas a partir, inquieto, na
perseguição dos teus sonhos, mas, curiosamente, à procura de novos ninhos, de
outras casas que sentes também como tuas.
“OS
HORIZONTES LARGOS DA POESIA”
Esta manhã mesmo com
Chuva e nevoeiro Beja
É a minha estrela d’alvorada.
Busco o seu espaço
Com fome de Terra.
A alma pede-me luz
A luz do meu Alentejo
A luz dos olhos dos amigos e
Os horizontes largos da poesia.
Venho beber palavras verdes
Cristais de alegria nos prados
De Fevereiro.
Esta manhã deixo tudo
Para lamber feridas
Na minha casa que é o sul.
Tens
o Sul, mas vais mais além (Alpedrinha, Espanha, Norte de África), horizontes
exóticos, destinos culturais diferentes… cordialidades diferentes, amizades
desejadas - “Inchalah!”
O
último poema,
“Uma
casa é como uma árvore por dentro”, revela a genialidade de um grande poeta: a
síntese total de uma narrativa que tu vives por dentro e por fora, a auto-exposição
despudorada que só os poetas consentem, a certeza de um eterno movimento -
permanecer, partir, voltar, permanecer.
“UMA CASA É COMO UMA
ÁRVORE POR DENTRO”
Uma
casa é como
Uma
árvore por dentro
Crescemos
e somos raízes
Emaranhadas
pelas paredes,
E
das varandas abertas
Chegam,
desde a infância
O
ar o vento o sol
Que
são a seiva dos dias.
Uma
casa é como um
Melro
que resiste cantando
Na
gaiola onde sonha
Voos
infindáveis. Por isso as
Casas
serão sempre portas de
Partidas
e chegadas
Imaginadas
no beiral
Ao
parapeito
Da
infância e realizadas
Ao
longo da vida.
Cada
casa é uma veia
Que
alimenta
O
poema prestes a
Nascer.
Respiração de
Pássaros
prontos para
Viajar…
Gostei
muito, amigo Luís! És um grande poeta. E volta sempre a casa com a alegre
convicção de que tudo o que vemos, pensamos e sentimos, é Poesia…
- um pingo de chuva a escorrer sobre
uma flor
- o céu cheio de estrelas numa noite
de verão
- o riso de um velho que nos conta
uma história
- uma fotografia
- uma história de amor ou de amizade
- uma paisagem que apetece olhar
muitas vezes
- o sorriso ou o choro de uma criança
…
Poesia
é, talvez, um pássaro que se solta de um texto em prosa e leva nas asas as
palavras mais bonitas.
Maria
José Balancho - 29 de Outubro 2018, Casa do Alentejo
Fotografias de Mário Sousa.