"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

sexta-feira, novembro 02, 2018

Maria José Balancho apresentou novo livro de Poesia (o 22º) de Luís Filipe Maçarico


No passado dia 29 de Outubro, foi lançado na Casa do Alentejo, com uma numerosa assistência, o 22º livro de Poesia de Luís Filipe Maçarico. 
Vera Inácio Cordeniz, cantora lírica, com o jovem pianista Thiago Tortaro, iniciaram a sessão, com grande agrado dos presentes. Depois, Rosa Calado, da direcção da CA saudou o público e caracterizou o perfil humano e artístico do autor aniversariante (66º aniversário). Maria José Balancho apresentou a obra (texto na íntegra a seguir), Flávio Gil, actor, poeta, associativista, disse poesia do livro, o poeta fez uma intervenção e, antes dos autógrafos, deu a palavra aos leitores, interessados em declamar versos deste novo título. Pelas reacções recebidas na ocasião e posteriormente por telefone e ou email, "Uma Casa é Como Uma Árvore Por Dentro" deixou boa energia e satisfação, pela interacção conseguida, naquela segunda feira chuvosa e fria.

“UMA CASA É COMO UMA ÁRVORE POR DENTRO”

de Luís Filipe Maçarico


Meu amigo Luís:

Atrevo-me a chamar-te amigo porque, desde que nos conhecemos, que os “nossos santos se cruzaram”, sem sabermos ainda o como ou porquê.

Aconteceu numa noite em Pias, no Alentejo, numa noite mágica e quente em que a poesia foi protagonista e as palavras, as sílabas e os sons se conjugavam em simbioses e sinestesias com a natureza do momento.

Foi tudo tão simples e tão forte (a magia das pequenas coisas): parecia que as almas se “tocavam” e se “trocavam”, num prazer quase absoluto naquela simbologia poética de uma noite de verão.

A nossa amizade começou por aí…

Em raros encontros e alguns telefonemas, percebemos que o timbre das nossas vozes e sensibilidades soava tão próximo, quase em uníssono. Nesse momento, conhecemo-nos melhor: sentimos as mesmas raízes crescendo dentro de nós e os mesmos valores a acotovelarem-se numa cumplicidade quase ancestral.

E agora apareceste, também num dia quente de verão, e colocaste nas minhas mãos o teu último livro, como se fosse um filho, para que eu o lesse e cuidasse dele.

“Uma casa é como uma árvore por dentro”

Gostei muito do título e senti-o como a síntese primeira desta obra.

A capa, de Marta Barata, a alma gémea deste livro.

Ao ler cada poema, quase sem querer, fui analisando as palavras, as imagens, as metáforas, a fonética e senti-me levada no deambular constante que imprimes à tua poesia. Perdi-me no labirinto deste vai e vem constante que todos os poemas indiciam.

Mas tudo tem uma lógica, até mesmo a Poesia, ainda que as conotações se confundam. Precisei de encontrar uma frase ou uma expressão que condensasse toda a obra, para que eu a pudesse ler como um todo. Os teus poemas, que eu lia e relia com tanto prazer, continuavam a desafiar-me.

De repente, deparei-me com o último livro de Mia Couto cujo título é “O Bebedor de Horizontes”. Voilá! Nesse momento senti que tinha chegado à essência do Poeta, à tua essência Luís. Penso ter compreendido, finalmente, a sede do teu constante partir e do teu constante chegar e ficar, permanecer.

Ficas porque é na “casa”, no ninho que te aconchegas, que meditas, que te reinventas, que recuperas forças para novas caminhadas. Partes, então, pelos ramos longos da tua árvore, levas raízes, folhas e frutos, e partes, sim, com a ânsia de quem tem sede, à procura doutros sonhos em diferentes horizontes.

A tua poesia adquire, por vezes, um movimento impaciente que desafia o tempo e o espaço, entre o ir e o voltar.

Quando regressas a casa e nela permaneces, usas palavras mais suaves, vogais fechadas, ditongos, sons nasalados, verbos no gerúndio que adoçam as frases e alongam o tempo - o tempo do pensar, do amadurecer.


NÚMERO VINTE E SEIS


Na implacável contabilidade

Das noites onde envelheço,

À janela da velha casa

Entre as brisas de Junho e

Os nevoeiros de Dezembro

Permaneço.


Esperando o quê?


Cicatrizando mágoas. Ausências,

O peso do tempo,

Escutando o vento…

À janela da velha casa

Eu venço!


Acima de tudo

Procuro o verso

Onde respira o Mundo

E permaneço.


Quando partes em deambulações por Lisboa ou agarras o verão com todos os sentidos, a tua poesia ganha a sensualidade dos locais, das experiências, das paixões, numa embriaguez Beaudelairiana (no poema Ivresse)… “Il faut être toujours ivre: de vin, de poesie ou de vertue, à votre guise, mais enivrez vous!”

Mas regressas ao ninho, sempre, onde as lembranças te assaltam, as memórias te perseguem e o passado te atormenta.

E, voltas a partir, inquieto, na perseguição dos teus sonhos, mas, curiosamente, à procura de novos ninhos, de outras casas que sentes também como tuas.


“OS HORIZONTES LARGOS DA POESIA”



Esta manhã mesmo com

Chuva e nevoeiro Beja

É a minha estrela d’alvorada.

Busco o seu espaço

Com fome de Terra.

A alma pede-me luz

A luz do meu Alentejo

A luz dos olhos dos amigos e

Os horizontes largos da poesia.

Venho beber palavras verdes

Cristais de alegria nos prados

De Fevereiro.

Esta manhã deixo tudo

Para lamber feridas

Na minha casa que é o sul.


Tens o Sul, mas vais mais além (Alpedrinha, Espanha, Norte de África), horizontes exóticos, destinos culturais diferentes… cordialidades diferentes, amizades desejadas - “Inchalah!”


O último poema,

“Uma casa é como uma árvore por dentro”, revela a genialidade de um grande poeta: a síntese total de uma narrativa que tu vives por dentro e por fora, a auto-exposição despudorada que só os poetas consentem, a certeza de um eterno movimento - permanecer, partir, voltar, permanecer.


“UMA CASA É COMO UMA ÁRVORE POR DENTRO”


Uma casa é como

Uma árvore por dentro

Crescemos e somos raízes

Emaranhadas pelas paredes,

E das varandas abertas

Chegam, desde a infância

O ar o vento o sol

Que são a seiva dos dias.

Uma casa é como um

Melro que resiste cantando

Na gaiola onde sonha

Voos infindáveis. Por isso as

Casas serão sempre portas de

Partidas e chegadas

Imaginadas no beiral

Ao parapeito

Da infância e realizadas

Ao longo da vida.

Cada casa é uma veia

Que alimenta

O poema prestes a

Nascer. Respiração de

Pássaros prontos para

Viajar…


Gostei muito, amigo Luís! És um grande poeta. E volta sempre a casa com a alegre convicção de que tudo o que vemos, pensamos e sentimos, é Poesia…

- um pingo de chuva a escorrer sobre uma flor

- o céu cheio de estrelas numa noite de verão

- o riso de um velho que nos conta uma história

- uma fotografia

- uma história de amor ou de amizade

- uma paisagem que apetece olhar muitas vezes

- o sorriso ou o choro de uma criança


Poesia é, talvez, um pássaro que se solta de um texto em prosa e leva nas asas as palavras mais bonitas.


Maria José Balancho - 29 de Outubro 2018, Casa do Alentejo
Fotografias de Mário Sousa.

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