Na passada segunda feira 29 de Outubro, durante o lançamento de "Uma Casa É Como Uma Árvore Por Dentro" li o seguinte texto, da minha lavra, para contextualizar a aparição deste volume de Poemas (o 22º):
Mia
Couto escreveu que “O
importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora” (in
“Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra”)
E Manuel
António Pina diz “assim chega o
viajante à tardia idade/ em que se confundem ele e o caminho” (“Como se
desenha uma casa”, p. 13) acrescentando: “Para
trás ficam portos, ilhas, lembranças,/ cidades, estações do ano (…) a porta
está fechada na palavra porta/ para sempre” (Ibidem, p. 17)
Quando elaborei “Uma Casa É Como Uma
Árvore Por Dentro”, juntando poemas dispersos, escritos durante a caminhada,
senti que se fechava um ciclo de vida - um longo ciclo de vida; um tempo longo
de mais de seis décadas, onde a casa era o cais de chegadas e partidas.
Recordo Eugénio de Andrade: “Às vezes
entra-se em casa com o outono/ preso por um fio,/ dorme-se então melhor,/ mesmo
o silêncio acabou por se calar” (“O Sal da Língua”, p. 30) São ainda do
Poeta de “Com Palavras Amo” estas estrofes: “No
meu corpo uma casa se levanta./ sem portas, sem paredes, sem telhado” (Op.
Cit. P. 89)
Tudo começou nos distantes anos 50 do
século XX, quando a criança que fui, perseguia com o olhar o voo dos pássaros
sobre as árvores do largo e a azáfama dos transeuntes, na ida para o trabalho
ou para as compras.
Via as varinas, os saltimbancos, os
vendedores de hortaliças, que chegavam nas carroças e as procissões
compassadas, que convocavam multidões de devotos, desfiles da cavalaria de
honra da GNR, acompanhando embaixadores e outras individualidades, rumo ao
Palácio das Necessidades e a famosa Maria Rapaz descendo dos autocarros, em
andamento, com cigarro ao canto da boca e pés certeiros chutando bolas feitas
de meias velhas.
Via tudo isso desde o parapeito- beiral da
janela, sonhando viagens, para lá do horizonte, para conhecer o Mundo.
Amadeu
Ferreira, sob o pseudónimo de Fracisco Niebro, adverte “nunca
esqueças o caminho para a casa/ (…) porque o caminho para casa/ é feito de
memória” (“Ars Vivendi Ars Moriendi”, p. 108)
A casa foi lugar de alegrias e lágrimas,
de solidão e abraços; ali despertei para a leitura e a escrita, tão
estimulantes. Eugénio de Andrade confirma: “Todas
as casas onde há livros e quadros e discos são bonitas”. Era linda a minha
velha casa!
Um corrupio de rostos e vozes invadia esse
palco de emoções e ausências. Na constante aprendizagem dos dias, na luta pela
sobrevivência, a casa foi o ninho onde congeminei sonhos e projectos,
renascendo das cinzas que o desencanto e a traição originam.
Muitas vezes, como Sophia de Mello Breyner Andresen indica “Em redor da chama/ Que a menor brisa doma/ E que um suspiro apaga/ A
casa fica muda (…) Apenas se ouve o bater do relógio do tempo” (“Geografia”,
pp. 37-39)
Pela casa amei, cantei, sorri, sentindo a
Natureza renascida ao espreitar na vidraça das janelas, e entre suspiros e
mágoas, vi o jardim em frente despir-se das folhas cobreadas, que antes tinham
sido refulgentes, de verde.
Uma casa assim, que é do tamanho do
destino, entre paredes, segredos e mistérios, fica tatuada na pele e na alma.
Mesmo depois de a deixarmos. Ouçamos Pablo
Neruda, em “Plenos Poderes”: “Pergunto-me,
onde/ está a cidade? (…) / Agora onde estou outras vidas há/ (…) Devo encontrar
em mim os ausentes,/ (…) e dalguma forma decidir/ onde plantar as árvores
novamente” (Op. Cit. Pp. 111, 113,115 e 117)
Não poderia deixar de vos dizer que a
habitação tornou-se num direito ameaçado.
Como se sobrevive com pensões miseráveis?
Que comem aqueles que têm de dividir a magra maquia com medicamentos? E quem
poderá pagar rendas subitamente elevadas, sem possuir recursos? Para onde vão
viver as pessoas despejadas que não têm alternativa?
No meu caso, no quarto onde em criança a
chuva caía na cama, aos 63 anos, no dia seguinte a ter apresentado o “É de
Noite Que Me Invento”, choveu ao pé do ouvido, tendo acordado sobressaltado com
o regresso ao passado.
Colocado na situação limite do “tem
direitos adquiridos, mas os co - proprietários não vão fazer obras”, optei por
deixar Lisboa e rumar à margem sul.
O final não é feliz. Há um sabor a exílio,
a perda irremediável na nova morada. E de acordo com o que acontece no Planeta,
continuo a tentar participar, no sentido do Futuro não ser pior. Foi Bertolt Brecht que escreveu:
“Nos
velhos livros vem o que é ser sábio:/ Manter-se alheio à luta do mundo, e o
curto tempo/ Passá-lo sem receio./ Também viver sem violência/ Pagar o mal com
o bem/ Não satisfazer os desejos, mas esquecer/ Vale por sábio./ E tudo isso é
que eu não posso:/ Em verdade, vivo em tempos escuros!”
( “Poemas e Canções”, p. 246)
Almada, 9 e 12 Outubro 2018
Luís Filipe Maçarico (texto) Autores Vários (Fotografias)
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