"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

domingo, março 25, 2018

Apresentação em Beja de “Vozes do Tempo”, de Luís Filipe Maçarico, com as palavras do escritor Martinho Marques

No passado dia 10 de Março (há portanto quinze dias) na Biblioteca Municipal José Saramago, de Beja, o escritor Martinho Marques apresentou o meu livro"Vozes do Tempo", perante um público interessado na leitura e no conhecimento. Apesar de não ser muito numeroso, incluía duas Mulheres desempoeiradas, vindas do concelho de Serpa, dois fraternos Amigos, residentes em Castro Verde e alguns bejenses, que acorreram à iniciativa.
Grato a todos e particularmente ao autor de "Nómada Sentado" e à minha querida Amiga Paula Santos, pelo simpático convite, que continuarei a tentar corresponder, com novas obras e partilhas.


Um pequeno exercício de memória
e com o meu resultado da leitura
da obra “Vozes do tempo”,
de Luís Filipe Maçarico


Sei do Luís Filipe Maçariço desde os tempos em que o jornal “O Cardo” se publicava, no idos anos 80 do século em que vivi as primeiras cinco décadas da minha vida. Então eu sabia-o só dos poemas que mandava, com dimensão reduzida e força descomunal. Lembro, em particular, a sua definição de clip, “o dente / de aço / que não permite / desencontros / entre duas formas / de abordar / um só assunto” e que já incluí numa espécie de antologia/memória de textos desse jornal, uma heróica tentativa de divulgar novos escritores (embora nem todos eles, pelo branco dos seus cabelos, pudessem ser considerados escritores novos), associado então à que era designada por Associação de Novos Escritores do Sul, que me deixou saudades de todos os que por lá eu encontrei, mas não me deixou vontade de ingressar noutra aventura (que sempre temi que fosse) parecida com aquela, que deu pouco resultado, para  além das amizades que proporcionou.
Do Maçarico sabia dos seus textos. Da pessoa falava-me o nosso conterrâneo António Joaquim Linhaça, natural da Boa Vista, quando o Luís trabalhava na Câmara Municipal de Lisboa e o Linhaça enaltecia as suas qualidades de criador activo e de activista e se referia à vida nada fácil que era então a sua.
O tempo foi-se passando, sempre comigo a seguir a sua obra, que ia crescendo, e em campos muito diversos (até porque, entretanto, o seu autor cursava Antropologia e terminava um mestrado nessa área), com muita colaboração em inúmeros locais, chegando inclusivamente a assinar recensões a livros de autores vários (e, entre eles, porventura algum ou alguns dos meus).
O homem conheci-o pessoalmente há pouco tempo na Casa do Alentejo (há-de fazer dois anos em Novembro), num encontro de homenagem ao poeta Eduardo Olímpio (ainda que, a seu pedido, a palavra homenagem não constasse). Sem haver muita frequência em contactos posteriores entre mim e o Luís, eles, no entanto, ocorreram, até ao ponto de estarmos hoje de novo em confluência, à volta de dois novos livros dele, um dos quais (“Vozes do Tempo”) ele me desafiou a apresentar, o que procuro fazer neste momento, sem confiar nas palavras que dissesse conversando (os improvisos resultam, sobretudo, quando são bem preparados) e preferindo confiar a um papel o que eu achasse dever ou ser capaz de dizer deste seu livro, depois de o ler na íntegra com gosto (e grande parte em voz alta).
Pois bem… O “Vozes do Tempo”, além do que o introduz, é composto de oito textos das décadas de 80 e de 90 do século em que, a três anos de distância, ambos chegámos ao mundo.  
Alguns serão da época d’ “O Cardo”. Apesar de quase todos terem sido publicados na altura e apesar da idade que eles têm, penso que se justifica reuni-los num único caderno. Eu imagino o carinho que o autor terá por eles, até por serem de um tempo de colossais dissabores, mas em que a força abundava, e era tanta, que o Luís tem essa época por um período em que ele “era infeliz e não sabia”. Faço questão de o lembrar, porque acho saborosa a confissão... e não porque ele mo dissesse, mas porque Maria Bispo o refere no texto introdutório a estas “Vozes do Tempo”, que lhe devem ter deixado fundas ressonâncias, porque não creio que as suas múltiplas actividades do presente se consigam sobrepor aos restos dos trinta anos. É que, embora não se admita que a saudade nos possa possuir, tal não depende somente de nós próprios. É o tempo e sempre o tempo que, mais tarde ou mais cedo, trata disso.

Na amável dedicatória com que o Luís me brindou logo no início do livro, aparece-me o aviso: “Ora toma lá prosa (por vezes poética, admito)” e São contos, senhor… autobiográficos”, o que cedo confirmou aquilo de que eu já desconfiava (até pelas muitas imagens inseridas na brochura) e que me fez pressupor ser o autor o melhor apresentador da colectânea de textos que tinha nas minhas mãos. Assim sendo, seria preferível eu ler-vos todos estes belos textos e ouvirmos depois o autor falar-nos do seu trabalho, depois de vocês próprios os sentirem e entenderem e concluírem se o Luís tem razão quando admite que esta prosa, por vezes, é poética.
Eu diria que o é frequentemente.
Escutem estes fragmentos que, ao acaso ou quase assim, vos trago dos vários contos:


Acordei diversas vezes durante a noite, e, quando a manhã nasceu, fresca e exuberante, saudei pinheiros, eucaliptos, o céu, o velho moinho, as ervas selvagens, as aves, as estradas, o Jamor, tudo!

Quando passarem pelo lote quarenta e seis da Urbanização da Portela, saibam que, antes daquilo ser um prédio, eu andei lá com muitos outros homens, ajudando a semear as raízes dessas paredes altas e vigorosas, fui um dos que participaram no crescimento das estruturas, transformando os caboucos em asas.

Procurando a metade perdida
Mato estes medos de mim.

Aí por volta dos dezoito anos, depois de ter descoberto na escrita um refúgio contra a corrente e um estímulo para encontrar o sabor dos dias, embora me limitasse a assimilar influências, ensaiando débeis passos, comecei a ver em cada palavra uma ponte importante para chegar aos outros.


Apesar de não ser fácil separar o que é poético daquilo que não o é (em arte objectividade nem sei se pode existir), creio que por estes textos, que não ficaria mal se chamássemos poemas, vem emoção e, talvez, a poesia já seja aquilo que a faz nascer.

Se quiséssemos classificar este grupo de oito contos (e classificar é optar pelo que de comum encontra nos elementos que integram o universo em referência, podendo dar primazia ao que outros desprezarão), diríamos que seis deles descrevem situações simples e atitudes de pessoas, mostrando a autenticidade, a humanidade e a grandeza existentes em gente que geralmente é tida por pequena. São eles: “O meu dia de trabalho nas obras”, “Lote quarenta e seis”, “A avó e os versos”, “O barbeiro Augusto”, “O velho e o tempo” e “Manuel Losté”.
Restam-nos  “Sessão solene” e “Pardieiros”.
“Sessão solene”, tratando igualmente de uma situação simplicíssima, em cerimónia de entrega de prémios aos vencedores de certos jogos florais, parece-nos de inserir mais no âmbito da sátira e da caricatura e, em vez de evidenciar grandeza humana, evidencia a mesquinhez e a pequenez das pessoas, candidatas a ser grandes ou confusas sobre o que é a grandeza.
“Pardieiros”, o mais extenso e o único que o Luís deixou inédito até este livro (e que teve por base um texto premiado no concurso InterArte 84), parece-nos também o mais complexo e, adicionando às palavras poderosamente poéticas bastantes “intermitências” (chamemos-lhe assim, na falta de melhor), trata, segundo o autor, de “um encontro amoroso, na grande cidade, em tempo de opressão e pobreza” e constitui para si “um exorcismo” (a confissão é do próprio e só não irá mais longe se ele o não pretender).

Mas não queria deixar de ler na íntegra, pelo menos, um dos contos, de que à partida, excluía “Pardieiros”, pela sua dimensão.
Dos outros, pela dimensão, poderia optar por qualquer deles, mas abdicava também da “Sessão solene”, pela excepção que constitui.
Dos restantes, poderia trazer-vos “O meu dia de trabalho nas obras” ou  “Lote quarenta e seis”, com o labor iniciático de um operário que reconhece e refere que não trabalha sozinho. Ou “A avó e os versos”, em que é concedida ao neto licença para fazer a sua escrita, depois de ver que a respeitam, desde que não descure a Matemática. Ou “O velho e o tempo”, em que o velho ocupante do terreno onde muito em breve iria nascer um polidesportivo reage desta maneira: “Vocemecês não podem esperar até eu colher as batatas que semeei?”. Ou até “Manuel Losté” que, rente ao mar do Algarve, lá nos confins de Aljezur, discreto e “parco no verbo”, tem uma sabedoria que lhe veio de muito ter vivido e uma sensibilidade “como uma jóia secreta”.
Optei pel’ “O barbeiro Augusto”, esse homem, ao mesmo tempo, comum e extraordinário, que “manejava tesouras e navalhas, escovas e palavras com uma precisão ímpar”.

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E é tudo, para já. Mais só direi se a conversa me levar a isso… e penso que levará.
Peço desculpa por exagerar na dimensão do que disse… sobre um poeta que age, sobre este poeta agente, poeta para quem a gente é muito.

A terminar, gostava de dizer que gostei de saber que ele gostou quando um dia lhe chamei “poeta de muitos caminhos”… que é apenas o que ele é.


Beja, 10 de Março de 2018

Martinho Marques


Introdução: LFM. Texto de Martinho Marques. Fotografias de Madalena Borralho e LFM.

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