Não consegui dizer nada ao Flávio Gil, quando saiu da sala 2 do São Jorge, onde representa "Mário A História de um Bailarino no Estado Novo". Apenas abraçá-lo, comovido.
Com texto e encenação de Fernando Heitor, "Mário" fez-me transportar às opções brechtianas de Ildefonso Valério na Guilherme Cossoul, pois ao ver aquele biombo, a cadeira de hospital e os poucos adereços de cena, voltei ao tempo em que aprendíamos técnicas de representação, lendo Stanislavski e Maiakowski, repudiando as peças naturalistas.
Mas este espectáculo conduziu-me também aos melhores momentos que a Casa da Comédia, nesses fabulosos anos 70-80, deu a conhecer, sob a batuta de Filipe La Féria, como "Eva Péron", de Copi, representada pela saudosa Teresa Roby, contracenando com João d'Ávila, ou "A Paixão Segundo Pier Paolo Pasolini", de René Kalisky, onde Rogério Samora, debutava ao lado de Roby.
A ousadia e provocação daqueles textos e dos marcantes desempenhos dos actores que La Feria escolheu, decorridas quatro décadas, vieram-me à memória, porque falamos de novo de um teatro que perturba, que choca, mas emociona, e essa é a grande diferença e o grande trunfo de Heitor e Gil.
Fernando Heitor, como um exímio escultor, dirige Flávio Gil, o qual após muitos anos a representar no Parque Mayer (de ter sido conselheiro do filme homónimo de António - Pedro de Vasconcelos), de encenar e actuar em palcos de colectividades, onde também canta fados, se transcende, atingindo nesta interpretação o que João Perry e Mário Viegas, por exemplo, conseguiram com o dobro da sua idade. Uma Sabedoria que impressiona, porque consegue encher a cena, transportando o público para contextos e personagens que vai materializando através de algum vestuário, que veste e despe num ritmo intenso.
Aos 28 anos, Flávio Gil demonstra ter vastos recursos, vocais e gestuais, que aplica neste desempenho memorável, conseguindo pôr-nos na pele do Outro. passando de um registo implacável para o contorno pungente, quando evoca a prepotência de padres, polícias e militares, de uma Sociedade intolerante com a homossexualidade. Acompanhamos o indivíduo na sua caminhada pela existência singular, repleta de estórias, vividas na Europa e na América do Sul, durante a Segunda Guerra Mundial, até ao internamento num hospital psiquiátrico. Cantando, dançando e narrando, o jovem actor consegue uma enorme empatia com o público, que segue as peripécias e as desventuras do personagem.
Quando na pele de Mário proferiu as derradeiras frases do texto, a assistência aplaudiu de pé e de forma vibrante, tendo o intérprete agradecido cinco vezes o apreço colectivo, sinal de que na galeria dos grandes actores do Teatro português, Flávio Gil já conquistou o merecido lugar de destaque.
Texto de Luís Filipe Maçarico. Fotografias recolhidas na Internet.
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