"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

quarta-feira, novembro 14, 2018

Texto de Alexandra Leandro lido na Casa do Alentejo em 29 de Outubro de 2019 por Flávio Gil



UMA CASA EM LISBOA



Conheci o Luís em Janeiro de 1990, quando ambos iniciávamos a nossa aventura no Curso de Antropologia. A partir dessa altura, a nossa amizade foi crescendo, e a casa da Praça da Armada passou a ser, para mim, um dos locais mais bem estimados da cidade de Lisboa.


Na Praça da Armada havia uma casa, a casa do meu amigo Luís, que veio a tornar-se, também, um pouco minha.


Nesta casa foram vividos momentos únicos, irrepetíveis, poéticos, e que são património de todos aqueles que a habitaram.



Era uma Casa em Lisboa.

Uma Casa protegida dos ruídos televisivos.

Uma Casa pequena, capaz de albergar memórias e sonhos.

Uma Casa em que era possível estender o tempo.

Uma Casa em que as conversas nos embalavam e encantavam, numa interminável partilha.

Uma Casa em que podíamos ser nós mesmos, e algo mais.

Uma Casa que acolhia o calor ameno das noites de Verão, e nos oferecia o bater ritmado da chuva.

Uma Casa humanista e humanizada.

Uma Casa-Refúgio.

Uma Casa colorida de fotografias, quadros, palavras.

Uma Casa que oferecia luz mesmo na escuridão da Noite.

Uma Casa em que comungávamos refeições mágicas, ao som de música e poesia.

Uma Casa em que trabalhávamos ideias, pesquisas, projetos.

Uma Casa em que cada um de nós ocupava um lugar especial, e em que nos sentíamos mais fortes por não estarmos sós.

Uma Casa-Memória, na qual percorremos vários tempos, e que ainda hoje nos habita.




Alexandra Leandro

Lisboa, 29 de Outubro de 2018

domingo, novembro 04, 2018

UMA CASA ASSIM, DO TAMANHO DO DESTINO, FICA TATUADA NA PELE E NA ALMA



Na passada segunda feira 29 de Outubro, durante o lançamento de "Uma Casa É Como Uma Árvore Por Dentro" li o seguinte texto, da minha lavra, para contextualizar a aparição deste volume de Poemas (o 22º): 



Mia Couto escreveu que “O importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora” (in “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra”)



E Manuel António Pina diz “assim chega o viajante à tardia idade/ em que se confundem ele e o caminho” (“Como se desenha uma casa”, p. 13) acrescentando: “Para trás ficam portos, ilhas, lembranças,/ cidades, estações do ano (…) a porta está fechada na palavra porta/ para sempre” (Ibidem, p. 17)



Quando elaborei “Uma Casa É Como Uma Árvore Por Dentro”, juntando poemas dispersos, escritos durante a caminhada, senti que se fechava um ciclo de vida - um longo ciclo de vida; um tempo longo de mais de seis décadas, onde a casa era o cais de chegadas e partidas.



Recordo Eugénio de Andrade: “Às vezes entra-se em casa com o outono/ preso por um fio,/ dorme-se então melhor,/ mesmo o silêncio acabou por se calar” (“O Sal da Língua”, p. 30) São ainda do Poeta de “Com Palavras Amo” estas estrofes: “No meu corpo uma casa se levanta./ sem portas, sem paredes, sem telhado” (Op. Cit. P. 89)



Tudo começou nos distantes anos 50 do século XX, quando a criança que fui, perseguia com o olhar o voo dos pássaros sobre as árvores do largo e a azáfama dos transeuntes, na ida para o trabalho ou para as compras.

Via as varinas, os saltimbancos, os vendedores de hortaliças, que chegavam nas carroças e as procissões compassadas, que convocavam multidões de devotos, desfiles da cavalaria de honra da GNR, acompanhando embaixadores e outras individualidades, rumo ao Palácio das Necessidades e a famosa Maria Rapaz descendo dos autocarros, em andamento, com cigarro ao canto da boca e pés certeiros chutando bolas feitas de meias velhas.

Via tudo isso desde o parapeito- beiral da janela, sonhando viagens, para lá do horizonte, para conhecer o Mundo.



Amadeu Ferreira, sob o pseudónimo de Fracisco Niebro, adverte “nunca esqueças o caminho para a casa/ (…) porque o caminho para casa/ é feito de memória” (“Ars Vivendi Ars Moriendi”, p. 108)



A casa foi lugar de alegrias e lágrimas, de solidão e abraços; ali despertei para a leitura e a escrita, tão estimulantes. Eugénio de Andrade confirma: “Todas as casas onde há livros e quadros e discos são bonitas”. Era linda a minha velha casa!

Um corrupio de rostos e vozes invadia esse palco de emoções e ausências. Na constante aprendizagem dos dias, na luta pela sobrevivência, a casa foi o ninho onde congeminei sonhos e projectos, renascendo das cinzas que o desencanto e a traição originam.



Muitas vezes, como Sophia de Mello Breyner Andresen indica “Em redor da chama/ Que a menor brisa doma/ E que um suspiro apaga/ A casa fica muda (…) Apenas se ouve o bater do relógio do tempo” (“Geografia”, pp. 37-39)



Pela casa amei, cantei, sorri, sentindo a Natureza renascida ao espreitar na vidraça das janelas, e entre suspiros e mágoas, vi o jardim em frente despir-se das folhas cobreadas, que antes tinham sido refulgentes, de verde.



Uma casa assim, que é do tamanho do destino, entre paredes, segredos e mistérios, fica tatuada na pele e na alma. Mesmo depois de a deixarmos. Ouçamos Pablo Neruda, em “Plenos Poderes”: “Pergunto-me, onde/ está a cidade? (…) / Agora onde estou outras vidas há/ (…) Devo encontrar em mim os ausentes,/ (…) e dalguma forma decidir/ onde plantar as árvores novamente” (Op. Cit. Pp. 111, 113,115 e 117)



Não poderia deixar de vos dizer que a habitação tornou-se num direito ameaçado.

Como se sobrevive com pensões miseráveis? Que comem aqueles que têm de dividir a magra maquia com medicamentos? E quem poderá pagar rendas subitamente elevadas, sem possuir recursos? Para onde vão viver as pessoas despejadas que não têm alternativa?



No meu caso, no quarto onde em criança a chuva caía na cama, aos 63 anos, no dia seguinte a ter apresentado o “É de Noite Que Me Invento”, choveu ao pé do ouvido, tendo acordado sobressaltado com o regresso ao passado.

Colocado na situação limite do “tem direitos adquiridos, mas os co - proprietários não vão fazer obras”, optei por deixar Lisboa e rumar à margem sul.



O final não é feliz. Há um sabor a exílio, a perda irremediável na nova morada. E de acordo com o que acontece no Planeta, continuo a tentar participar, no sentido do Futuro não ser pior. Foi Bertolt Brecht que escreveu:

“Nos velhos livros vem o que é ser sábio:/ Manter-se alheio à luta do mundo, e o curto tempo/ Passá-lo sem receio./ Também viver sem violência/ Pagar o mal com o bem/ Não satisfazer os desejos, mas esquecer/ Vale por sábio./ E tudo isso é que eu não posso:/ Em verdade, vivo em tempos escuros!” ( “Poemas e Canções”, p. 246)



Almada, 9 e 12 Outubro 2018      



Luís Filipe Maçarico (texto) Autores Vários (Fotografias)

sexta-feira, novembro 02, 2018

Maria José Balancho apresentou novo livro de Poesia (o 22º) de Luís Filipe Maçarico


No passado dia 29 de Outubro, foi lançado na Casa do Alentejo, com uma numerosa assistência, o 22º livro de Poesia de Luís Filipe Maçarico. 
Vera Inácio Cordeniz, cantora lírica, com o jovem pianista Thiago Tortaro, iniciaram a sessão, com grande agrado dos presentes. Depois, Rosa Calado, da direcção da CA saudou o público e caracterizou o perfil humano e artístico do autor aniversariante (66º aniversário). Maria José Balancho apresentou a obra (texto na íntegra a seguir), Flávio Gil, actor, poeta, associativista, disse poesia do livro, o poeta fez uma intervenção e, antes dos autógrafos, deu a palavra aos leitores, interessados em declamar versos deste novo título. Pelas reacções recebidas na ocasião e posteriormente por telefone e ou email, "Uma Casa é Como Uma Árvore Por Dentro" deixou boa energia e satisfação, pela interacção conseguida, naquela segunda feira chuvosa e fria.

“UMA CASA É COMO UMA ÁRVORE POR DENTRO”

de Luís Filipe Maçarico


Meu amigo Luís:

Atrevo-me a chamar-te amigo porque, desde que nos conhecemos, que os “nossos santos se cruzaram”, sem sabermos ainda o como ou porquê.

Aconteceu numa noite em Pias, no Alentejo, numa noite mágica e quente em que a poesia foi protagonista e as palavras, as sílabas e os sons se conjugavam em simbioses e sinestesias com a natureza do momento.

Foi tudo tão simples e tão forte (a magia das pequenas coisas): parecia que as almas se “tocavam” e se “trocavam”, num prazer quase absoluto naquela simbologia poética de uma noite de verão.

A nossa amizade começou por aí…

Em raros encontros e alguns telefonemas, percebemos que o timbre das nossas vozes e sensibilidades soava tão próximo, quase em uníssono. Nesse momento, conhecemo-nos melhor: sentimos as mesmas raízes crescendo dentro de nós e os mesmos valores a acotovelarem-se numa cumplicidade quase ancestral.

E agora apareceste, também num dia quente de verão, e colocaste nas minhas mãos o teu último livro, como se fosse um filho, para que eu o lesse e cuidasse dele.

“Uma casa é como uma árvore por dentro”

Gostei muito do título e senti-o como a síntese primeira desta obra.

A capa, de Marta Barata, a alma gémea deste livro.

Ao ler cada poema, quase sem querer, fui analisando as palavras, as imagens, as metáforas, a fonética e senti-me levada no deambular constante que imprimes à tua poesia. Perdi-me no labirinto deste vai e vem constante que todos os poemas indiciam.

Mas tudo tem uma lógica, até mesmo a Poesia, ainda que as conotações se confundam. Precisei de encontrar uma frase ou uma expressão que condensasse toda a obra, para que eu a pudesse ler como um todo. Os teus poemas, que eu lia e relia com tanto prazer, continuavam a desafiar-me.

De repente, deparei-me com o último livro de Mia Couto cujo título é “O Bebedor de Horizontes”. Voilá! Nesse momento senti que tinha chegado à essência do Poeta, à tua essência Luís. Penso ter compreendido, finalmente, a sede do teu constante partir e do teu constante chegar e ficar, permanecer.

Ficas porque é na “casa”, no ninho que te aconchegas, que meditas, que te reinventas, que recuperas forças para novas caminhadas. Partes, então, pelos ramos longos da tua árvore, levas raízes, folhas e frutos, e partes, sim, com a ânsia de quem tem sede, à procura doutros sonhos em diferentes horizontes.

A tua poesia adquire, por vezes, um movimento impaciente que desafia o tempo e o espaço, entre o ir e o voltar.

Quando regressas a casa e nela permaneces, usas palavras mais suaves, vogais fechadas, ditongos, sons nasalados, verbos no gerúndio que adoçam as frases e alongam o tempo - o tempo do pensar, do amadurecer.


NÚMERO VINTE E SEIS


Na implacável contabilidade

Das noites onde envelheço,

À janela da velha casa

Entre as brisas de Junho e

Os nevoeiros de Dezembro

Permaneço.


Esperando o quê?


Cicatrizando mágoas. Ausências,

O peso do tempo,

Escutando o vento…

À janela da velha casa

Eu venço!


Acima de tudo

Procuro o verso

Onde respira o Mundo

E permaneço.


Quando partes em deambulações por Lisboa ou agarras o verão com todos os sentidos, a tua poesia ganha a sensualidade dos locais, das experiências, das paixões, numa embriaguez Beaudelairiana (no poema Ivresse)… “Il faut être toujours ivre: de vin, de poesie ou de vertue, à votre guise, mais enivrez vous!”

Mas regressas ao ninho, sempre, onde as lembranças te assaltam, as memórias te perseguem e o passado te atormenta.

E, voltas a partir, inquieto, na perseguição dos teus sonhos, mas, curiosamente, à procura de novos ninhos, de outras casas que sentes também como tuas.


“OS HORIZONTES LARGOS DA POESIA”



Esta manhã mesmo com

Chuva e nevoeiro Beja

É a minha estrela d’alvorada.

Busco o seu espaço

Com fome de Terra.

A alma pede-me luz

A luz do meu Alentejo

A luz dos olhos dos amigos e

Os horizontes largos da poesia.

Venho beber palavras verdes

Cristais de alegria nos prados

De Fevereiro.

Esta manhã deixo tudo

Para lamber feridas

Na minha casa que é o sul.


Tens o Sul, mas vais mais além (Alpedrinha, Espanha, Norte de África), horizontes exóticos, destinos culturais diferentes… cordialidades diferentes, amizades desejadas - “Inchalah!”


O último poema,

“Uma casa é como uma árvore por dentro”, revela a genialidade de um grande poeta: a síntese total de uma narrativa que tu vives por dentro e por fora, a auto-exposição despudorada que só os poetas consentem, a certeza de um eterno movimento - permanecer, partir, voltar, permanecer.


“UMA CASA É COMO UMA ÁRVORE POR DENTRO”


Uma casa é como

Uma árvore por dentro

Crescemos e somos raízes

Emaranhadas pelas paredes,

E das varandas abertas

Chegam, desde a infância

O ar o vento o sol

Que são a seiva dos dias.

Uma casa é como um

Melro que resiste cantando

Na gaiola onde sonha

Voos infindáveis. Por isso as

Casas serão sempre portas de

Partidas e chegadas

Imaginadas no beiral

Ao parapeito

Da infância e realizadas

Ao longo da vida.

Cada casa é uma veia

Que alimenta

O poema prestes a

Nascer. Respiração de

Pássaros prontos para

Viajar…


Gostei muito, amigo Luís! És um grande poeta. E volta sempre a casa com a alegre convicção de que tudo o que vemos, pensamos e sentimos, é Poesia…

- um pingo de chuva a escorrer sobre uma flor

- o céu cheio de estrelas numa noite de verão

- o riso de um velho que nos conta uma história

- uma fotografia

- uma história de amor ou de amizade

- uma paisagem que apetece olhar muitas vezes

- o sorriso ou o choro de uma criança


Poesia é, talvez, um pássaro que se solta de um texto em prosa e leva nas asas as palavras mais bonitas.


Maria José Balancho - 29 de Outubro 2018, Casa do Alentejo
Fotografias de Mário Sousa.