Fotografia de Luís Filipe Maçarico
*Publicado na revista "Aldraba" nº 23, pp. 18 a 21.
[O CINEMA] “FOI UMA REVELAÇÃO QUE ME
PERMITIU CONHECER MELHOR A VIDA E O MUNDO”
Henrique Espírito Santo é ele mesmo um
Património.
Fundador de Cineclubes e Produtor de
tantos filmes portugueses, Henrique tornou-se uma referência incontornável na
História do Cinema Nacional. A Aldraba entrevistou-o ( e à esposa Guida) no seu
ambiente familiar, numa casa repleta de boas memórias, de uma vida intensamente
fruída.
“Quando comecei (anos 60) - principiou por
nos dizer - a malta fazia publicidade, quando fazíamos documentários, ficávamos
todos satisfeitos. Ainda fiz uma coisa gira com o Fonseca e Costa, grande
amigo, com quem comecei a trabalhar, fizemos um filme patrocinado pelo Banco
Português do Atlântico [hoje BCP] fomos contactados para fazer a inauguração do
Banco, como documento para os arquivos do próprio banco e documentário, onde
ele tinha sido construído (em Luanda), fizemos a reportagem sobre o meio onde o
banco existe e chamámos a esse filme “O Regresso à Terra do Sol”.
Há uma frase que conto sempre….Sei que
houve reunião da Administração do BPA. Passou como complemento no Monumental, e
um Administrador disse: “Os rapazes são artistas, mas gostam muito dos pretos!”
O filme tem voz off do Orlando Costa
[tinha firma de publicidade] era o autor do texto. O que é certo, é que nunca
no filme há referência à Colónia. Quando se diz Luanda, diz-se Capital de
Angola. E então, o Fonseca e Costa, o director de fotografia e do som, o
electricista e eu, éramos a equipa para fazer coisas desse tipo!”
Henrique Espírito Santo produziu filmes em
várias situações, foi director de produção e até actor: “Devo ter participado
em, à volta de mais de cem filmes (curtas e longas metragens)…”
O nosso entrevistado contou-nos como
surgiu o seu interesse pelo Cinema: “Na realidade, a origem é de facto aquilo
que tenho dito: Os meus pais gostavam de cinema. Naquela altura, as crianças
iam ao cinema, ao colo. Daí a influência…”
Henrique recortava os bonequinhos da
revista “Mosquito”, para fazer filmes…
“Com os miúdos do prédio, do bairro. Nasci
em Queluz. A mostra dos filmes na caixa de sapatos foi na Parede. Havia na
Parede um daqueles cinemas ao ar livre…
[Como os pais eram cinéfilos] As
brincadeiras andavam à volta do cinema.”
A primeira profissão de Henrique Espírito
Santo foi descrita assim:
“Antes de terminar o Curso Comercial,
comecei a trabalhar aos 13 anos. Naquela altura, os filhos começavam a
trabalhar mais cedo, era uma ajuda para a família [comecei numa empresa de
passagens e passaportes]. Era tudo para a Venezuela. Nesse tempo,
acompanhava-os ali às Trinas, onde se tratava dos passaportes, das identidades.
Eu acompanhava essas pessoas. Ganhava mais em gorjetas que em salários.”
À pergunta “fundaste e frequentaste
Cineclubes. Que importância teve esse Movimento”? o nosso interlocutor
respondeu que “Foi um dos movimentos mais importantes na luta contra o
Fascismo. O cinema, tal como é conhecido, a chamada “Sétima Arte”, não é por
acaso…Chamávamos escritores, actores, músicos, toda a gente ligada à Cultura,
era quem convidávamos para fazer palestras. E essas sessões era uma maneira
também de fugir ao controlo porque as colectividades facilitavam também. Essas
associações culturais…Aí exibimos filmes com maquinazinha de 16m/m, livrávamos
as pessoas, que não tinham de ir à Censura. A repressão apercebeu-se destas
sessões.
O Cineclube Imagem chegou a dar sessões
nas prisões. Tínhamos um apoio muito grande da Embaixada Francesa. Tinham outra
mentalidade, havia essa abertura maior.
Íamos buscar os documentários, íamos na
“ramona” ( a organização e o representante da Embaixada) [Henrique sorri de
orelha a orelha, deliciado, com a lembrança bizarra] íamos para a cadeia, que
nos facilitava o transporte. A própria prisão é que “dava” a camioneta…
Os dirigentes de todos os cineclubes eram
convidados para falar de cinema; isso permitiu-me p. ex. conhecer muita gente.
A Censura fazia cortes. Quem ia falar,
tinha indicação que não podia ler o que tivesse lápis encarnado. Em Santarém li
tudo. Na sala havia controlo e um amigo ouviu o inspector comentar: “O macaco
leu tudo” [Foi sobre o filme “A Tortura”, sueco]
Ainda houve quatro encontros de dirigentes
cine-clubistas. Na altura havia trinta e tal cineclubes (incluindo as
ex-colónias)”
Este homem de Cultura revela
constrangimentos daquela época: “Estive 30 dias nos “curros” do Aljube. Só
saímos dali para ir à Rua António Maria Cardoso.[sede da PIDE] Foram a minha
casa às sete da manhã. Fui preso. O motivo? Sempre por ser comunista! Um tipo
falou, divulgou toda a actividade cultural. A partir daí fizeram
interrogatórios, foram até à Célula do Cinema…”
“Antes de trabalhar no Cinema, já estava
numa Companhia de Seguros. Sou chamado ao Palácio Foz, através de uma carta que
enviaram à Companhia de Seguros. Tinha a ver com um filme espanhol que o
cineclube apresentou. A Censura chamou-me. Então comentei: “Não percebo, isso é
sobre Espanha. Isso é baseado numa revista autorizada e à venda nas bancas!”
A companheira de toda uma vida, assistiu a
toda a conversa, intervindo algumas vezes. Henrique elucidou-nos, com humor:
“Encontrei-a na Lourinhã, quando ia
visitar uma prima. É da terra dos dinossauros!”
A esposa sublinhou com sensibilidade: “O
cinema foi o seu sonho de menino, realizado!”
Aldraba - Trabalhaste com Manoel de
Oliveira, José Fonseca e Costa, João César Monteiro, António de macedo, Luís
Filipe Rocha, Solveig Nordlund… Que filmes e realizadores exigiram mais de ti?
“Não só pela origem cineclubista, onde
muitos realizadores estavam ligados, eu estava ligado à produção e nunca tive
problemas, não me lembro de cenas desagradáveis.
O João César Monteiro entrou no Instituto
Português de Cinema, num tempo em que tínhamos dificuldades de arranjar
subsídios, entrou descalço, calças, camisa rotas, para pedir o subsídio. O
Centro Português de Cinema era dos cineastas anti-regime e o César (que era
intitulado por nós como “l’enfant terrible”), eu estava com o António Macedo, e
o Cesar diz: “Acabei de ocupar o Centro Português de Cinema!” O Macedo
ameaçou-o de lhe dar um murro. E o César respondeu: “Temos tempo para falar
depois”…
Ocorreu-nos perguntar se um filme, a
partir de um livro resulta bem?
“Os responsáveis pela ideia fílmica podem
partir de algum livro. O “Cerromaior” é fiel ao Manuel da Fonseca. O realizador
participa sempre no argumento, para estabelecer um acordo de identidade com a
ideia. O autor acredita nas pessoas que vão fazer o filme. O Paulo Pires entrou
pela primeira vez no cinema, no “Cinco Dias, Cinco Noites”
Voltando à prisão, “A Guida, quando estive
em Caxias, visitava-me, estive na mesma cela com um indiano e o Orlando Costa
morava aqui próximo, encontrámo-nos no mesmo restaurante, ia muitas vezes a Goa
e procurou o tal indiano (Mohamadé?) que tinha todos os meses um dia de jejum e
meditação…”
Aldraba - Quanto tempo estiveste em
Caxias?
“Dezoito meses de pena e cinco anos de
actividade política cortada.
Houve uma altura em que pensei que me iam
bater, pedi-lhes um papel e escrevi “a actividade de um cineclube é…” Os tipos
entraram pela sala (eu só não me ri) mas quando vi uma cena do chefe de
brigada, Abílio Pires, - isso aparecia muito nos filmes policiais … Safei-me de
levar uma carga de porrada… “Vocês estão com sorte. Têm muitos amigos no
estrangeiro!”
Veio no “Le Monde”. Intelectuais como Marguerite
Duras subscreveram pedidos de libertação!”
Aldraba - Antes de Abril de 1974, como foi
fazer cinema?
“No “Recado” até se vê um Pide a matar um
político que regressa ao país clandestino, num barquinho de pesca. Eram
traficantes…O nosso protagonista não tinha relação com ninguém e quando é preso
pela PIDE há a cena em que o chefe de brigada pergunta “Então, e o homem?” e o
outro responde “Nem uma palavra!” [Estava encoberto] Tal como o Macedo consegue
fazer o nú com delicadeza, o Fonseca e Costa não teve cena que tivesse corte…”
Aldraba - Travaste amizade com muita gente
do Cinema Nacional e Internacional. Queres destacar algum actor/actriz?
“Fico sempre com a sensação que estou a
ser ingrato. Felizmente, nos filmes em que participei, nunca me senti enganado.
Todos eles tiveram princípios muito correctos.
Em “A Fuga” [o filme começava com
interrogatório na António Maria Cardoso e não foi possível filmar no local ] os
locais são todos autênticos. Fomos proibidos de filmar nas salas…”
Num aparte Henrique confessa a admiração
tida por Geraldine Chaplin.
Aldraba - Tens lembrança da Tóbis, ou já
não utilizaste esses estúdios?
“Eu pertencia à Direcção da Tóbis, mas
ainda tive um período ligado mais ao Conselho Fiscal. O presidente da Tóbis
antes (e permaneceu depois) era um homem que gostava do cinema…”
Aldraba – Produziste filmes de animação?
“Apareceu-me um jovem que fez um
filmezinhi sobre o Franco, um tipo que depois rebenta (filme de animação),
facilitei, mas nunca fui produtor. Eu era amigo do Carlos Barradas…”
Aldraba - E do Vasco Granja…
“Um divulgador. Também cineclubista.
Estivemos presos ao mesmo tempo.”
Aldraba - Após o 25 de Abril, aconteceram
certamente episódios dignos de realce. Queres partilhar algum?
“Fui nomeado para Director do Instituto
Português de Cinema e tinha de vir no “Diário da República”, a publicação.
Cai o Governo da Pintassilgo. Eu sou
automaticamente desnomeado.
O engraçado disto tudo é que a responsável
do IPC vem ter comigo a rir dizendo que tenho ainda um salário, para receber,
entre a nomeação e a exoneração.”
Aldraba - Trabalhaste em Televisão?
“Nunca fiz nada disso…No DVD do Miguel
Cardoso, acrescenta os meus ateliers de crianças, o actor, a actividade docente
[dei aulas na Escola de Cinema] para falar de Produção.
Em 1978 fiz a “sebenta” sobre como
produzir filmes, como se deve actuar…”
Aldraba - Como se pode definir o trabalho
do produtor cinematográfico?
“O produtor tem de se encarregar de
arranjar dinheiro e tem de gostar de cinema. O Cunha Telles e mais recentemente
o próprio Paulo Branco… O director de produção é o braço direito de um
produtor, num filme. Eu era contratado para trabalhar com qualquer produtor…”
Aldraba - Como vivenciaste os prémios que
filmes como “Tabú” obtiveram?
“Senti-me bem, fui a Berlim, andei no tapete
vermelho. Felizmente que teve essa qualidade. Há filmes em que participei, em
relação às minhas interpretações (realizadores amigos convidavam-me para uma
espécie de Hitchcook) para ir daqui ali, dar uma palavra…”
Aldraba - Que valor tem o cinema no teu
percurso, como ser humano?
“O valor do cinema …Por gostar de cinema e
ir ver muitos filmes, ter passado a conhecer coisas que de outra maneira não
conheceria.
Abriu muitos leques: Política, Família,
Adultério, Perseguições…Foi uma revelação, que me permitiu conhecer melhor a
vida e o mundo. Fui a Festivais…”
Aldraba - E como aparece o Prémio Sophia?
“O Prémio Sophia é de carreira (2014).
[Mostra vários troféus:7ª semana de Cinema
Europeu da Covilhã/ Maio de 1998 – Homenagem Inatel; Coimbra/2004; Associação
de Imagem, Cinema e Televisão/ 2012; Fantasporto/ 2014 e posa, sorridente, com
estas magníficas distinções.]
Anoiteceu. O tempo voou, lesto, ao longo
desta conversa cordial, recordando a carreira luminosa. Henrique ficará para
sempre na nossa memória e no património comum que é o cinema.
Entrevista de Luís Filipe Maçarico e Maria
Odete Roque.