"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

quarta-feira, julho 22, 2015

O Estranho Caso do Poema Desaparecido, no PAN 2015, em Morille

A manhã do último dia do Festival PAN, em Morille, começou com a constatação que o meu poema "Caminhada" [excerto], publicado no 3º livro que editei - A Essência - desaparecera.

O poema fora colocado, pela organização, numa parede da terra, plastificado, como fizeram com todos os autores, expostos num circuito poético, em paredes, recantos, árvores, para proteger da chuva e do sol, esses simpáticos cartazes com versos, num fundo negro e letras brancas, encimados pelo tema deste ano [DIFICYL].

Vários fotógrafos, como Renato Roque e Sara Timóteo, deram conta do interesse, que tais versos despertaram nos leitores ocasionais, que foram descobrindo nessa leitura, os poetas deste PAN 2015.

Durante o evento, um "Fan" exultou, quando conheceu o autor da "Caminhada", parabenizando-me por ter escrito aquele texto que tanto o tocava.

Passei, a seu pedido, o poema à mão, numa folha em papel creme, do Campo Arqueológico de Mértola, que costumo levar comigo, para pintar com café e fiz um rabisco com uma paisagem que tanto podia ser do Alentejo como de Salamanca. Nesta altura do ano, o feno impera, tornando a terra num quase deserto de muita(s) sede(s).

O "Fan" ainda tentou substituir uma palavra que tem muitas leituras: "Versos", por "desencanto", "traição" ou qualquer coisa assim, menos metafórica, do aquela que sugere leituras menos redutoras.

Acontece que este amigo, escritor de livros de viagens, como é o caso do belo "Arigato", a quem ouvi chamar "Peregrino", contou um episódio surrealizante, passado no balcão de uma companhia de transportes rodoviários, em que o preço da viagem marcado era 48 euros e que teve de pagar 53€, com a argumentação da bilheteira de estarmos em época alta...ficou baptizado por mim como o 48-53.,,

Tive pena que este viajante, tivesse partido antes do tempo, mochila às costas, pelos caminhos de Salamanca, perto das seis da madrugada, segundo relatos de quem afirma ter visto o seu furtivo vulto, abandonando Morille, sem se despedir, não tendo assistido ao magnífico programa de domingo dia 19 de Julho, do PAN.

A sua sensibilidade, ao que julgo saber, ressentiu-se do esforço, consumado em tarefas de apoio, que teve de desempenhar sozinho, alegando que precisava de meios humanos, para as completar com êxito e prazer.

Nessa manhã, dei por falta do poema (o único que alguém retirou da parede) e imaginei a situação, que me fez sorrir, lisongeado com a possibilidade de algum(a) admirador(a) ter-se apoderado do cartaz, com o poema, levando-o na bagagem, como souvenir espiritual de uma Festival, onde se cruzaram emoções intensas.

Quem quer que tenha realizado este gesto, fica expressa a minha gratidão, pois contribuiu para o meu ego ter ficado reconfortado.

Nota de Rodapé: Saudades da sua boa disposição, Amigo 48-53! Arigato!

Já agora, transcrevo o poema, na íntegra e na versão original (publicado na página 11 do livro "A Essência", edição de autor, Lisboa, Tipografia Ramos Afonso & Moita, 1993)

CAMINHADA

Habituei-me a guardar apenas
As palavras essenciais. Queimei 
muita coisa durante a caminhada,
Despojado, ou talvez mais forte,
Desfolho os escassos versos que
permanecem. Habituei-me a viver
longe dos olhos de água onde
antigamente habitava. Os meus mortos
morreram outra vez. Habituei-me a 
respirar um aroma de rios secretos.
Gostava de acreditar que o tempo 
não existe. Mas há uma brisa  de cinzas
Que teima em visitar-me. Por isso
busco o silêncio dos mais altos ventos.
Habituei-me a procurar outras manhãs.
Não lamento nada. Aprendi a voar.

Texto e poema de Luís Filipe Maçarico
Fotos de Renato Roque e Sara Timóteo.

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