"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

quarta-feira, junho 08, 2022

“DÓI-ME TUDO; SENHOR DOUTOR! ESTÓRIAS COM HUMOR APESAR DA COVID - 19” DE JORGE BRANCO, OU QUANDO O OLHAR DE UM MÉDICO TEM ESCALA HUMANA




A par de uma investigação aprofundada e transdisciplinar, acerca da sua terra natal repartida em vários volumes, cuja apresentação da “Fotobiografia de Uma Aldeia Alentejana” testemunhei num amplo e repleto salão na Comenda, com centenas de conterrâneos, Jorge Branco, em boa hora decidiu escrever sobre aspectos humorísticos da sua profissão, implicando um relacionamento onde o gracejo espreita e se derrama, entre médico e doentes.

 

Na Introdução a este “Dói-me tudo, senhor Doutor! Estórias com humor apesar da Covid - 19”, Jorge Branco explica o seu olhar sobre os doentes:

“Muitas dessas pessoas segui-as dezenas de anos: vi-as nascer, crescer, ter família, perderem-se na vida ou, as mais das vezes, singrarem e subirem a pulso pelas agruras do quotidiano de gente pobre. Mas, neste “vale de lágrimas”, sempre encontrei disposição e alento para relativizar o sofrimento e dar ânimo aos que dele precisam (…) Escolhi momentos de descontracção, de convivência pura, de entendimento humano, enfim, de boa disposição.

(…) Agradeço aos meus utentes, o seu manancial de boa disposição que transportam debaixo do manto nem sempre diáfano das queixas que os apoquentam diariamente.”

 

Na sua obra “O Riso”, Henri Bergson explica que “Para compreendermos o riso, temos de o repor no seu meio natural, que é a sociedade; temos sobretudo de determinar a sua utilidade de função, a sua função social.” (Op. Cit. P. 17)

 

Foi com grande agrado e muito divertimento que li esta colecção de apontamentos, crónicas, contos, textos sempre eivados de boa disposição que neste tempo de sobressaltos, tanta falta faz ao leitor, pois e citando ainda Bergson “O riso deve dar resposta a certas exigências da vida em comum”, porque “o riso deve ter uma significação social.” (Ibidem).

Supõe-se que a sequência dos textos não corresponde a uma cronologia de acontecimentos, ainda que se fundamentem na observação-participante que os antropólogos desenvolvem e a recolha de cariz também etnográfico tenha implicado a necessidade de um caderno de campo, onde se patenteiam mentalidades e comportamentos e o melhor património que é o próprio ser humano.

 

Tal como em João de Araújo Correia, a prática do consultório garante a experiência laboratorial de uma escrita original, retratando inúmeros pacientes e suas preocupações…

Enquanto aquele escritor da Régua criou personagens dramáticos que se tornaram clássicos da literatura portuguesa - como na velha das panelas, nos figos de pau, no mestre dos dízimos ou para o meu bispo, dos “Contos Bárbaros”, Jorge Branco regista episódios anedóticos, que são o contraponto alegre de situações sérias, acessíveis a qualquer leitor que se satisfaça com uma breve e hilariante descrição.

 

Do paciente incapaz de se “peidar” à utente que necessitava de várias caixas de aspirinas, para travar o envelhecimento das suas plantas, passando pelo homem que desejava um medicamento para se proteger da Covid, da qual ouvira falar na televisão, ou o marvilense que contraiu um ABC, cada caso merece uma reacção divertida ou intervenção que faz pensar e sorrir, no dizer do Bastonário da Ordem dos Médicos.

 

Juntando-se, na galeria dos médicos - escritores, como Júlio Dinis e Fernando Namora, Jorge Branco com a sua imaginação prodigiosa e sempre risonha, dá-nos a conhecer a incomodativa funcionária verborreica, a rapariga magra, aracnídea e a filha que proíbe o pai de beber, contribuindo na sua narração para evidenciar uma nova lista de personagens irresistíveis.

 

Jorge Branco, relatando muitos momentos e figuras da sua actividade laboral, demonstra uma enorme paciência, exercendo, como escreveu Júlio Machado Vaz em “Recuperar o Espanto: O Olhar da Antropologia”:

 “A arte de curar, mas também de cuidar do doente” (Op. Cit. P. 55) pois na Antropologia Médica “O ponto de partida lógico é a consulta, o diálogo médico-doente.” (Ibidem: 60)

Berta Nunes, em “O Saber Médico do Povo” avisa-nos que a doença “pode ter causas” naturais psicológicas, sociais ou espirituais e uma mesma doença pode ter vários níveis “causais”. (Op. Cit: 192).

 

Por vezes, encontramos doentes, que recusam fazer certos exames, parecendo saber mais que o médico, como é o caso da colonscopia de D. Engrácia e no caso do conto “Chulé”, não podemos deixar de lembrar Georges Vigarello, em “O Limpo e o Sujo”, chamando a atenção para o sabão que “apaga e dissolve a sujidade. Purifica.” (Op. Cit: 134).

 

A generalidade dos pacientes é gente dos bairros periféricos, que vive nas franjas da cidade, explicando com ignorância e simplicidade redutoras quadros clínicos complexos que o médico descodifica divertidamente, comentando a linguagem criativa dos populares, evitando a rotina.

Úrsula é um diálogo feliz, em contraponto com Grafemas, cujo doente é conflituoso. Os contrastes abundam.

Incoerente é a protagonista do derradeiro texto.

Efectivamente, Guiomar afirma não entender palavras como hidroterapia e talassoterapia, usando contudo vocábulos como miorrelaxantes, ansiolíticos, antidepressivos, estabilizadores do humor, analgésicos e enésima vez.

O desfecho revela uma petulância desconcertante que conduz o autor a mais uma tirada insólita e risível.

 

Livros como este fazem falta!

Revelam o lado cómico de uma profissão que lida com o padecimento dos utentes, enxergando na espontaneidade dos processos e respostas à ingenuidade dos queixosos, o lenitivo, para não só os predispôr para dias menos aflitivos como garantir àquele que se apoia na ciência e sabedoria, soluções que incluem chistes e gargalhadas nas conversas, receituário e análise.

A vida observada sob este prisma, é sem dúvida mais suportável.

Parabéns, Jorge Branco!

Parabéns à Colibri pela edição desta obra tão especial!

 

Luís Filipe Maçarico - autor do texto de apresentação e das imagens

(Poeta; Antropólogo)

18-4-2022/ 3-5-2022


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