"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

terça-feira, novembro 12, 2019

AFONSO MIRANDA DO “SINO DOCE” DE ALMADA: UMA VIDA DE MUITO TRABALHO AMBICIONANDO A QUALIDADE




As histórias de vida constituem uma fonte de informação sobre o passado, das cidades e da Comunidade, quotidianos, profissões, estorvos e superações pessoais e colectivas. Na entrevista que a seguir se transcreve, reconstitui-se um percurso biográfico, valorizando-se o singular, enquanto objecto de estudo. Ao longo da conversa foi evidente que nem o relato dos acontecimentos surgiu ordenado nem todos os eventos apareceram na narrativa, tendo o entrevistado revisitado factos que lhe tinham escapado. Nomes e lugares ficaram envolvidos numa espécie de nevoeiro ou, aplicando a explicação de Marc Augé, acerca da Memória e do Esquecimento, as recordações sofrem uma erosão semelhante à das falésias do litoral.

Figura popular de Almada velha, nas últimas três décadas e meia, Afonso Miranda acedeu fazer uma pausa na sua constante actividade, à frente da Pastelaria “Sino Doce” para responder às nossas perguntas. Começámos por querer saber onde nasceu e como foi a infância e a Juventude?

“Nasci no Hospital, em Torres Vedras. Daqui é que fui para a aldeia (Silveira), até aos 12 anos. Foi uma infância muito pobre, perto da praia de Santa Cruz. A minha mãe trabalhava no campo, vida dura. Um dos trabalhos da minha mãe era reparar as barracas de lona da praia de Santa Cruz e eu ia molhar o pé…O meu pai veio trabalhar para Sassoeiros, na Quinta do Barão, do vinho de Carcavelos. Essa vinha foi renovada pela equipa que o meu pai arranjou…Tenho irmão mais velho e irmã. Concluí a instrução primária lá. Ainda não tinha doze anos vim para Lisboa. O meu irmão que tem mais oito anos, orientou, protegeu, foi um pai. Fui trabalhar na Av. Defensores de Chaves, numa mercearia, como marçano, durante um mês. Depois estive quatro anos na Alameda das Linhas de Torres. O patrão era da zona de Alenquer. Sendo merceeiro, era pessoa aprumada. Aprendi com ele.”

- Tem saudades da sua terra? Costuma ir até lá?

“Costumo lá ir! É sempre a minha terra. Gosto. Tenho a memória de jogar à bola, brincar, ir à escola e ter um grupo, o grupo dos sete, designado “Os Gajos da Silveira” - lá da aldeia, que nos juntamos, de seis em seis meses. São do melhor! A minha terra é a aldeia do Joaquim Agostinho. É uma referência. Com dezassete anos tive conhecimento de haver trabalho para a época balnear na Praia de Santa Cruz. Fiz duas épocas de praia.”

- O percurso profissional e a sua especialização derivam de uma vocação?

“Não, foi o meu irmão que me arranjou emprego numa pastelaria na Praça do Chile [“Raio de Luz”]. Tive um episódio marcante. O patrão deu-me cinco contos para ir ao Grémio (Agora é Associação de Industriais de Pastelaria) pagar açúcar e farinha. Levava o dinheiro e a requisição num livrito de cow-boys. Junto ao Jardim de Cesário Verde dei por falta do envelope. Encontrei o papel, mas o dinheiro não. O dono da pastelaria era um senhor cinco estrelas. Era uma pessoa de nível. Fiquei a pagar um tanto todos os meses e depois ele perdoou parte da dívida…Quando vim da primeira época de praia fui trabalhar no Café Império. Tinha cem colegas. Fazia a folga dos outros todos (no balcão do restaurante, na pastelaria, lá em baixo eram só cafés…). Estive nove meses. Quando saí do Império, fui fazer outra época de praia. Gostava de lá estar (era o nº 13) ao fim de seis meses era o nº 3. Não é que fosse tão bom assim. Os outros é que iam embora. Até me queriam aumentar. Tinha de andar de lacinho e jaleca. Quando venho da segunda época de praia, com 19 anos, fazia parte de um grupinho - doze - de rapazes na Praça do Chile (eu vivia na Cavaleiro de Oliveira), onde estava o malogrado recentemente falecido Jordão, que nessa época era júnior do Benfica. Nesse grupo havia dois elementos que trabalhavam na “Ferrari”, considerada uma das melhores casas do país. Um deles estava mobilizado para a guerra colonial. Tive a sorte de ir para lá. Estive dez anos na “Ferrari”. Fui para Cabinda nos últimos anos da guerra. Saí das Caldas em Dezembro de 1973, fui em rendição individual. Tive a sorte de ser colocado no Comando de Sector. Estive na cidade. Cheguei de Angola no dia em que os trabalhadores da “Ferrari” começaram a fazer o controle operário. Fui delegado sindical e da Comissão de Trabalhadores ao mesmo tempo. Em 1979 propus a categoria de terceiro pasteleiro, que foi aceite (As direcções do Sindicato e do Patronato normalmente são dos hotéis) tínhamos um contrato com três categorias. Tinha de integrar nove elementos com várias categorias. A minha proposta era passarem a ganhar o dobro do ordenado…”

-Lisboa foi importante na sua caminhada?

“Lisboa é a minha querida terra. Eu adorava Lisboa. De vez em quando vou para Lisboa. Conheço a cidade a pé. Vivi e trabalhei lá.”

- Como surgiu Almada no seu percurso?

“Por acidente. Quando casei, fui morar para Benfica, para casa da tia da minha mulher. Vim para aqui, para casa maior. Fiquei com a mãe do meu sogro, a sogra, a minha mulher, a filha da tia, a minha filha que nasceu e a cadela. Quando viajava no Fiat 600 alguém ficava em terra! O meu pai vivia sozinho, apareceu-me. Declarou-se a doença da minha mulher. O meu pai foi para as Costas de Cão (Lar da Misericórdia de Almada) e tratava do jardim.”

- Como nasceu o “Sino Doce”?

“Foi fundado em 1981, com dois sócios que vieram da “Ferrari”. Vínhamos do Chiado para a “terra dos Comunistas” e por nossa conta…Isto era uma gelataria e cafetaria muito fina para a altura. Isto aqui era montões de gente, ao fim de semana. Havia cinema na Academia!”

- Como se conquista e assegura um grupo de clientes tão variado (e fidelizado)?

“A casa ganhou um certo nome, vieram três profissionais de casa conceituada. Enveredámos por bolinhos de confecção caseira e temos colaboradora que assegura o fabrico de bolos de aniversário. Eu tinha lista de vinte e duas pessoas que faziam bolinhos. Ia com o carrito buscar os bolos, que tinham muita aceitação. Cheguei a trazer nove bolos de um quarto andar, sem elevador. Aquilo podia cair tudo. Sofre-se muito para ter uma casa destas. Havia um juíz do Tribunal de Almada, famoso por cantar fado de Coimbra - Machado Soares - que um belo dia diz assim: “Esta casa é a casa do país que tem maior variedade de bolos bons!” Frequentaram isto o Maestro Lopes Graça, o Paulo de Carvalho, uma pessoa que eu gosto muito, nessa época vinha com a Isabel Baía. Já entrou aqui o Francisco Louçã, o Sérgio Godinho, a antiga presidente da Câmara (Maria Emília Sousa) vinha todos os dias.”

Ficaram registados inúmeros episódios, momentos alegres e menos risonhos, nas folhas de papel onde se apontaram as estórias do quotidiano de uma casa assim.

Antes de terminarmos as duas horas de diálogo, e quase em jeito de balanço escutámos isto: “Não somos nós que somos bons. Infelizmente, o que havia há trinta e tal anos era de muito má qualidade. Até em vãos de escada qualquer caramelo punha máquina de café e a “patroa” fazia pastéis…Temos a sorte de estar em frente à maior sala de cinema do país. Tenho consciência que primeiro que tudo é a qualidade.” Por outro lado, acrescenta: “Devia ser obrigatório ter pessoal com formação. Outra coisa: a escolaridade obrigatória. Eu é que acabo por dar formação. Não é dizer que em terra de cegos quem tem olho é rei, é ter consciência que a qualidade é o mais importante!”

À despedida, o senhor Afonso Miranda que coleciona frases e provérbios, deixou estas palavras para reflexão: “A Felicidade não existe no facto da ausência de problemas, mas sim na capacidade de lidar com eles.”


Luís Filipe Maçarico (artigo e fotografias)
Revista nº 26 da Aldraba - Associação do Espaço e Património Popular

2 comentários:

Unknown disse...

Obrigada mais uma vez Dr Luis Macarico por nos dar a conhecer as nossas gentes Parabens Sr Afonso por ser a pessoa que é Sempre disponivel no seu bom atendimento Muitos anos de trabalho em Almada e a porta do Sino Doce sempre aberta e lá estava o Sr Afonso com a sua simpatia para nos atender

Unknown disse...

Realmente é uma casa que prima na qualidade do seu produto, só é pena que a pessoa em causa e sindicalista que foi, tenha nos ultimos 5 anos explorado os trabalhadores, tendo funcionarios anos sem contrato e sem regalias.Colocando funcionarias a fazer parte times, para depois fazerem horarios inteiros.E o que é de gentil e simpatico com os clientes seja de intragavel com os funcionarios.A falta de formação não é dos empregados mas sim desse Sr.Afonso Miranda.