"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

terça-feira, novembro 12, 2019

MESTRE DELFIM CORREIA: O PERCURSO DO ALFAIATE DE ALMADA ANTIGA (*)


Na obra “Alfaiates e Costureiras: Um olhar sobre o engenho da agulha e do dedal” (2008), da autoria de Ana Durão Machado e editado pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém, assegura-se que “A arte da confeccção do vestuário” é “uma das mais antigas actividades humanas”.

O termo alfaiate vem do árabe al-kaiat, remontando as primeiras referências sobre a função no nosso país ao século XII. Decorridos duzentos anos, o desempenho de alfaiate estava representado na Casa dos Vinte e Quatro sendo obrigatória a presença destes artífices nas procissões, como a do Corpo de Deus, porque as confrarias religiosas regulamentavam a actividade de profissionais e aprendizes.

No século XIX as associações profissionais substituíram as antigas confrarias e as mulheres passaram a integrar as oficinas de alfaiate. Nos anos 70 do século XX as lojas de pronto-a-vestir contribuíram para o declínio do ofício hoje quase em extinção. (Machado, 2008:6-7).



Natural de Alcafozes, Delfim Correia completou o ensino primário, em Idanha - a - Nova, sede do Concelho, a 13 km. “Quando fiz o exame da quarta classe, eu sabia a Geografia, a História de Portugal, as Ciências, etc.”



Os pais trabalhavam no campo e “Andavam a vender loiça vidrada, com a carroça e machos” e o jovem Delfim “andava a vender com eles nas férias.”

Mais tarde, “Já tinham uma carrinha…A minha mãe tirou a carta, era uma mulher determinada!”

E enquanto os pais iam para as feiras e “dormiam aqui e acolá, como os nómadas” o miúdo ia às feiras, com eles, também participava nas vendas. Todavia, chegou a ficar em casa, enquanto os pais procuravam o sustento. “Eu lá ficava sozinho com a candeia de azeite, uma torcidazinha. Depois mais tarde, veio o petróleo. Na província era assim!”



Os pais na altura pensaram que “para ele não ir para o campo, podia ir aprender um ofício. A única solução que eles achavam que era boa era os Alfaiates. Aprendia a costura e também barbeiro (os alfaiates ao fim de semana cortavam o cabelo). Estive num que também arrancava dentes com a turquêz. Hoje os jovens não sabem nem imaginam como era a vida na província naquele tempo, que não havia luz eléctrica, nem outras coisas necessárias, era uma vida difícil que a gente passava!”



Ao longo desta conversa, Delfim Correia, revelando a cultura aprendida na experiência vivida e nos livros que gosta de ler, com notável memória foi contando os enredos da sua história de vida. Quisemos saber quanto tempo fez a aprendizagem do ofício. Mestre Delfim foi aprendiz dos doze aos dezasseis anos, tendo estado em três alfaiates, tantos quantos existiam na sua terra. Esteve num, onde aprendeu a fazer “casas” (o sítio para meter o botão). “Ele punha-me o cabresto para o dedo aguentar dobrado…Cabresto era o que se punha aos burros e machos”, esclarece, acrescentando: “Ele atava ali e o dedo já não abria…No segundo, aprendi a barbeiro. Os clientes trabalhavam nos campos e só no fim - de - semana, ou seja no sábado é que iam ao barbeiro cortar o cabelo e fazer a barba mas ninguém queria ir para o rapaz até que apareceu um velhote cheio de coragem “Faz aqui a barba, corta à vontade, não tenhas medo, faz como sabes!” A partir daí já todos queriam ir para o rapaz, perderam o medo.”

“Havia três alfaiates, dois deles também eram barbeiros”, recorda. “O último foi com quem aprendi.”



Fazia serões nas festas, até às tantas, conta. “O meu pai, ao fim de três anos, teve de pagar setecentos escudos. Tenho a impressão que ainda tenho a cadeira de barbeiro, lá na terra…Depois, com dezassete anos, os meus pais - por portas e travessas - lá arranjaram um conhecimento em Santarém. Um dos melhores alfaiates de lá. A minha mãe fez a mala, com uma roupinha…”Quando chegares, desces do comboio, que há-de lá estar alguém à tua espera.”

Provavelmente não teria andado de comboio, se não fosse a necessidade de se especializar, pois havia dificuldades em tudo, nota.

“Lá estava uma senhora, à minha espera e a chamar por mim: “Delfim, Delfim!” O marido era alfaiate.”



Esteve um ano em Santarém, cidade da qual gostou muito; arranjou amigos, conhecidos. Ao fim de um ano meteu-se no comboio a caminho de Lisboa.

“Tinha morada de alfaiate que trabalhava a obras [Trabalhavam em casa, faziam as obras para lojas] Era tudo feito por medida. Andei nos oficiais a obras. Arranjei quarto em Campolide. Vinha a pé para a Baixa porque não havia dinheiro para transportes.

Tinha aqui uns tios deste lado. Eu não gostava muito de Lisboa, mudei para Almada. Com 18 anos quase 19 não me alimentava bem, adoeci, voltei à terra, para os pais. Recuperei, voltei para a cidade. Arranjei uma senhora da terra, pagava a pensão.

Depois, abriu a Fábrica “Confecções Tejo”, em Almada, onde conheci a minha esposa. A minha esposa é de Moura e eu sou da Beira Baixa. Conhecemo-nos na costura. Ela era minha aprendiza. Trabalhei nas “Confecções Tejo”, até que passei a trabalhar na Cova da Piedade (Lãs Labete), com o senhor Sebastião.”

Mestre Delfim contou que algum tempo decorrido passou a laborar no “Rodrigues & Rodrigues”, no Largo de São Paulo, em Lisboa. Faziam tudo. “Fui o oficial escolhido para fazer os fatos por medida.” 



Posteriormente, “os meus pais compraram uma máquina e viemos trabalhar a obras para casa. Vinham a minha namorada e outras raparigas.

Casei com 23 anos, aluguei uma casa e nela desenvolvi a arte de alfaiataria. Arranjei loja de alfaiataria. Naquela altura não estava parado.”

Ao perguntamos quantos metros de tecido transformou em fatos, responde que na época em que o ofício não tinha a concorrência do pronto - a - vestir, “por semana e por mês era capaz de fazer 20 a 30 fatos à medida.



Foi um dos fundadores do “Solar dos Leões de Almada”, em 23 de Julho de 1969, o prestígio que granjeou está visível nas fotografias antigas que guarda e mostra ao entrevistador: Numa, Eusébio e Hilário, ídolos do desporto português, aparecem na sua loja. Noutra, a filha de Romeu Correia destaca-se na mesa de um convívio gastronómico.

Leitor assíduo “Gosto muito de Poesia e História”, o senhor Delfim também gosta de ler a Bíblia, contando que se baptizou como testemunha de Jeová em 1973.

No final da entrevista, o nosso interlocutor recorda que começou no seu ofício de alfaiate aos 12 anos. Tendo completado 79 anos, Mestre Delfim Correia quer continuar “enquanto tiver boa disposição.”



Luís Filipe Maçarico (texto e fotografias)
(*) Artigo divulgado na revista nº 25 da Aldraba, Associação do Espaço e Património Popular

1 comentário:

maria de lurdes bras disse...

Era o Alfaiate onde o meu marido fazia os fatos, antes de me conhecer...sou costureira de Alfaiate mas nunca trabalhei no Delfim...