"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, junho 11, 2007

AFECTOS E SONHOS PARTILHADOS AO SUL (À LUZ DA DIGNIDADE, EM ÉVORA)




Partilho hoje o texto que li no Lançamento do Livro “A CELEBRAÇÃO DA TERRA” em Setembro de 1999:

"Fez ontem precisamente oito anos que foi lançado “Da Água e do Vento”, o meu primeiro livro, na extinta Galeria “Diário de Notícias”, em Lisboa, igualmente às seis da tarde. Apetece dizer, parafraseando Ary:


“Quanto caminho andado
Desde o primeiro poema!
Ai! Quanto verso ensanguentado
Com mãos de alegria e pena!”

Nasci nesta cidade, na freguesia de S. Mamede, há perto de quarenta e sete anos, tendo por parteira, a acreditar no relato da minha avó paterna, uma mulher bela mas maltratada, de nome Anjoulilah, que premonitoriamente me desvendou a luz deste Mundo, luz que busco desde essa noite de vinte e nove de Outubro.

E nunca mais a vi, nem à urbe de Túlio Espanca, desterrado no estuário de muitas e desvairadas paixões que é Lisboa.

“Vocês já repararam no tempo que temos de passar connosco mesmos?” Esta frase, dita por Jerry Lewis, durante o filme “As Noites Loucas do Dr. Jecky” que me foi mostrado num quartel de Nampula, persegue-me, com outra, que iniciava o livro “Mangas Verdes com Sal” de Ruy Knoplli, também trazida de Moçambique: “Para quê pretender incendiar os astros, quando dentro de nós ainda não acendemos todas as luzes?”

Ao escrever “O Santo Inquérito”, Dias Gomes produziu a terceira frase (e não sei de cor mais citações), que me acompanha “Há um mínimo de dignidade que um Homem não pode vender, nem em troca do próprio sol.”

Estes lemas têm-me acompanhado e activam o sangue que me abrasa, pois enquanto muitos embalam ambições, eu insisto em soltar sonhos.

Criado pela avó paterna, oriunda de Sant'Ana da Carnota, aldeia do concelho de Alenquer, a familiaridade com a terra, os riachos, as árvores, as searas e os comportamentos campesinos, o seu imaginário, inundaram de perfume as paredes da velha casa, mesmo quando as condições de vida eram precárias e obrigavam Gertrudes a trabalhar para a fome não poisar no abrigo da Praça da Armada.

Então, fechado à chave, com alguns brinquedos exibidos numa vitrine inacessível, sonhava viagens, inventando sublimações para sobreviver.

A poesia deve ter surgido aí, dessa multiplicidade de ausências.

Pai e mãe apenas e sempre em retratos que a traça ou a chuva que caía dentro de casa devoraram.

Entretanto, a avó morreu, quando longe do 25 de Abril, a 13.000 kms daqui, o rapaz ausente ansiava o regresso, para, entre outras coisas, destruir o móvel das proibições e aprender o valor da palavra trabalho, transportando frigoríficos e máquinas de lavar roupa para gente modesta bafejada com um libertador poder de compra, baldes de cimento sobre andaimes de esperança ou vassouradas matinais contra o lixo do tempo.

Assim me relacionei com a precaridade: “Não lamento nada/Aprendi a voar!”//

A Évora voltei em 1977, para festejar o sol das vozes, no Templo de Diana e na Praça do Giraldo.

Nesse já distante segundo ano da revolução dos cravos, também Portel, Casebres e Baleizão receberam o abraço do jovem solidário, que aprendera o sofrimento desde muito cedo e ansiava uma terra fraterna.

A imagem que tenho do Alentejo carente e digno, resistente e poético, é um modelo construído, que passa pelo conhecimento adquirido com a leitura de grandes Mestres da nossa literatura e enriquecido ao longo das inúmeras viagens e contactos que me levaram a saborear a lampreia do Vivaldo, em Mértola, pela mão de D. Lucy e Manuel Martins, a voz envolvente da soprano Ana Ferraz na Sé de Évora, quando ao lado da Paula Lucas – a generosa prefaciadora da “Celebração da Terra” – e do Paulo Grilo, redescobria a minha cidade, as gargantas acesas de tristura que escutei no lº. congresso do Cante, em Beja, ou ainda o esplendor de madrugadores diálogos vencendo o gelo de Janeiro numa hospitaleira residência da Serra de S. Mamede.

Em Moreanes conheço o José Simão, que idealiza ressuscitar ruínas e dar outro sentido aos moinhos e armazéns abandonados.

Da antiquíssima Mirtolah, guardo a exuberância do aguarelista Mário Elias e o sereno, melancólico rosto da Bia, que acompanhada do Carlos faz mel e artesanato. E as cegonhas e os trigais da arte de Margarida Barroso, nascida entre o pó da terra e o céu de fogo.

Na cidade Natal de Al. Mutamid, habituei-me a visitar a Rosário Fernandes, que afaga o coração dos amigos com as palavras mais ternurentas do planeta.

No Redondo, Luísa Calapez incentiva os habitantes a vestir as ruas com papel festivo enquanto o Thakis recolhe tesouros do ventre da terra.

Na Vidigueira, Afonso do Ó ensina aos forasteiros coisas excelentes como a Rota do Vinho Novo e na Amadora, a poetisa Conceição Baleizão, com quem já saboreei o odor e a música de palavras como Tozeur, Jerba ou Sidi Bou Said, iniciou-me nos Mistérios de Estremoz.

No Feijó, os amigos Afonso e Alho dão voz e asas às saudades do Alentejo.

(...)

Todavia, em Montemor-o-Novo é que o feitiço alentejano atingiu uma dimensão que seria injusto condensar numa só frase.

Cheguei há alguns anos, numa excursão de idosos do bairro onde moro, à biblioteca nova e o espanto ganhou sete fôlegos. Lembro-me de uma anciã analfabeta felicitar a Câmara por terem oferecido à criançada aquilo que ela não pudera usufruir nos seus tempos de menina.

Na passada primavera, a inexcedível fraternidade académica do professor Alexandre Laboreiro, ilustre montemorense, por quem nutro uma imensa admiração, desafiou-me a elaborar uma conferência sobre “A Personalidade Poética do Alentejano” que, entusiasmado apresentei, perante uma sala repleta, atenta e simpática, no Convento de S. Domingos, sede do Grupo dos Amigos de Montemor.

Porém a cidade de Curvo Semedo é também, e desde há um ano, para mim, as mãos e o coração da professora Isabel Aldinhas. José e Isabel receberam-me na sua casa de pão, telas, gatos e aloés, com a gastronomia local e o carinho dos seres que nasceram para partilhar ideais.

Isabel busca o equilíbrio que a existência vai perdendo, numa alquimia de tintas e pincéis.

Girassóis e alcachofras, voos e segredos, ofícios e tradições perpassam numa obra que indaga pelos caminhos velhos.

A pintura de Isabel Aldinhas revela-nos uma paciente tecedeira de cores, moendo habilmente a farinha dos dias, criando um universo especial, onde a identidade alentejana resiste. Tudo isto senti ao vislumbrar a aguadeira, as ceifas, os montes que esta artista plástica mostrou em Março de 1998 na Casa do Alentejo.

Trocámos então endereços, depois de lhe entregar as minhas impressões. Devo tê-la cativado, porque pelo Natal, decorridos nove meses enviou-me uma mensagem.

Regressado de Alpedrinha, terra adoptiva que me fez cidadão honorário há sete anos, e onde há uma década passo a quadra natalícia, respondi-lhe para agradecer a gentileza e a poesia acabou por entrar na nossa conversa.

Os poemas viajaram sob a forma de projecto de livro para o Largo de S. Sebastião, surgindo na volta do correio numa proposta que incentivei, depois de Isabel prometer que ilustraria o volume.

Devo a este maravilhoso casal os patrocínios que o projecto obteve.

Apenas fiz os versos. O resto, que é muito – entrevistas, tipógrafos, transporte e entrega dos exemplares, é tudo fruto do seu labor.

Sem estes amigos, “A Celebração da Terra” dormiria porventura, ainda numa gaveta.

Através da pronúncia de homens limpos como Luís Jordão, o Alentejo tem-me visitado na cidade.

Há muitos anos, em casa da Fanita, a explicadora de Matemática, filha dum guarda republicano de Arraiolos, pressenti os frios transtaganos na braseira que não dispensavam.

Relembro Maria Clementina, alentejana anónima de Cuba, desterrada na grande metrópole, em busca dum sustento menos precário, na sua caminhada diária até à fábrica e depois da reforma, a condutar a amizade com o aroma de iguarias apuradas.

Vejo-a na sua casa do Sabugo, com o marido, antigo pastor de Alvalade-Sado, José de seu nome, a re/inventar o campo no quintal, com criação e pequeno pomar, mais um forno acolhedor, onde o pão aloirava, em poema quotidiano de respirações felizes.

Com os olhos da sua alma desvendei os terreiros e os jardins da terra natal de Fialho de Almeida, as portas em forma de ferradura, a irrepreensível alvura de paredes e sorrisos.

Nunca conheci pessoa tão risonha: contra a mágoa, tudo era motivo para gargalhada se entornar sobre a mesa, como o vinho, o precioso vinho do chão de lume.

Flor desfolhada no sonho verde de ver os Campos Grávidos de Flores.

Há dias, no telefone com a minha amiga Cristina Martins, dizia-me ela que eu era um lisboeta que falava fascinado de becos e varinas, eléctricos e cacilheiros, quando me conheceu, e que a pouco e pouco se foi apercebendo que eu me transformara num homem dividido entre o largo de melros e jacarandás de Lisboa, invadido pelas mais diversas poluições e os horizontes de liberdade e luta onde o ser humano respira a magnífica pequena grande gota da sua dignidade.

Esta revelação parece-me um bom pretexto para lembrar Eduardo Olímpio:

“Olá meu Alentejo minha veia

meu sangue que derramo na cidade

se aí a esta hora é lua cheia

aqui há uma lua cheia de saudade.”

O Alentejo que eu também respiro é uma colheita de saberes e sabores partilhados, onde às vezes poisam lágrimas.

No rescaldo dumas enxurradas que deixaram atrás de si um rasto de desolação, escutei a alma alentejana numa espantosa permanência de coragem e solidariedade, contra todas as sombras. O poema que dá o título ao livro nasceu nesse Novembro de trevas e recomeço.

Mas o Alentejo é sobretudo a ânsia de renovação, na paciente espera.

Por isso me ocorrem momentos felizes, na Zambujeira durante uma férias inesquecíveis, a descoberta do Halley que os céus da Amendoeira do Campo permitiram, a extasiante pesquisa histórica, etnográfica e gastronómica ora no Alto ora no Baixo Alentejo, em Monforte ou Almodôvar, em Ourique ou Marvão, com a Elvira e o Filipe Taveira ou a Paula Rodrigues e o Fernando Duarte, desbravando Antas e Castelos, recolhendo um património verbal único, pois sem ter conhecido este povo nos seus destinos, estaria limitado ao malabarismo vocabular dos que após o jantar, equipados de pantufas e canetas d'oiro mergulham na galáxia do narcisismo e da solidão.

E porque “ninguém nasce sozinho” como diria um extraordinário Homem de Cultura, sempre presente nos lançamentos dos meus livros e que hoje pela primeira vez não estará pessoalmente, o meu amigo pintor Artur Bual, quero deixar uma palavra de agradecimento e destaque para os Drs. Abílio Fernandes, Presidente da C. M. de Évora e Alexandre Pirata Vinagre, Presidente da Junta de Freguesia de Nª. Sª. da Vila, políticos dum humanismo e sensibilidade actuantes, que tive o privilégio de contactar.

Saúdo igualmente a responsável autárquica pela Cultura em Montemor, Vitalina Roque Sofio, que a par da Dra. Ana Borges, da Delegação Regional da Cultura do Alentejo evidenciam como as mulheres, ao desempenharem cargos importantes contribuem naturalmente para apoiar os artistas, dando asas aos seus sonhos.

O Sul que amo e a que cada vez mais pertenço e no qual incluo Cabo Verde e a Tunísia, é uma varanda onde o afecto se escancara ou se esconde.

Os alentejanos não se dão facilmente.

É costume o sorriso ser espraiado, se for merecido.

Que será sempre verdadeiro, ao contrário dos que riem a todos e quando o pano cai mudam de máscara.

Nestas terras nasceu a canção que foi senha para a liberdade. Hoje nasce mais um livro.

Que nunca morra a dignidade merecedora do pulsar a que me orgulho de pertencer.

21 e 22/IX/99

LUÍS FILIPE MAÇARICO

Fotos de LFM(7 de Junho de 2007)

2 comentários:

Fernando Pinto disse...

A Poesia, amigo Luís, nasce no coração de quem a cultiva, de quem a semeia com o olhar ou com o aparo. Reparo que continuas assim: um poeta de coração cheio!

Abraço do teu amigo
Fernando Manuel

marialascas disse...

Por mais que o mundo seja a tua casa, há nesse mundo lugares em que serás sempre mais autêntico, mais feliz, sofrerás mais...
Um deles será Évora, um caminho que iniciaste e já não há como não o percorreres. Serenamente...