"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, outubro 16, 2017

Vozes do Tempo - autobiográfico e catártico

Partilho na íntegra, o texto que li no lançamento do livro "Vozes do Tempo":

"Bem vindos!
Permitam-me que saúde a Professora Doutora Maria Beatriz Rocha-Trindade, a Professora Zulmira Bento, vinda de Coimbra e Laura Garcez, que veio de S. Mamede de Infesta.
Começo por agradecer à Direcção do Grupo Dramático e Escolar "Os Combatentes", por tornar possível esta apresentação do meu segundo livro de prosa.
A minha gratidão é extensiva à GM, nas pessoas de Glória Silva e Teresa Fradique, pela concretização da presente obra.
Agradeço também aos fotógrafos Jorge Cabral, Mário Sousa e à Ana Isabel Veiga, pela última imagem.
Quanto à autoria das mais antigas, perdeu-se na voragem do tempo, sobrando a da capa, executada na, há muito desaparecida Foto Artis, situada nos anos sessenta, na Rua do Sacramento a Alcântara. Por último, agradecer a colaboração especial da Esmeralda Veloso e o precioso prefácio de Maria Teresa Bispo.

Acerca dos oito textos de "Vozes do Tempo", importa salientar que a sua maioria foi escrita na primeira metade dos anos oitenta, sendo os dois últimos da década seguinte.
Todos eles são autobiográficos, mesmo quando falam de outras pessoas, como Manuel Losté, personagens reais que se cruzaram comigo ao longo desta caminhada que é a assistência.
Contudo, o mais longo - "Pardieiros" - é catártico, pois através dele tentei justificar o que nunca me foi explicado, por aqueles que me trouxeram a este mundo, apaziguando o desconforto.
Acontece hoje uma coincidência formidável.
"Pardieiros" desenrola-se, em parte, na Fonte Santa e este livro é lançado perto da Possidónio da Silva, onde a avó paterna resgatou o meu Futuro, levando-me para a sua casa de bonecas, com um parapeito onde sonhei viagens, seguindo o voo dos pássaros.

No primeiro livro de memórias, intitulado "Degraus", falei da Carmo Leiteira, que urinava no leite que vendia porta a porta e da Luísa Choca, que era tão bêbeda, que nem se apercebeu que uma rata de cano de esgoto comera a cana do nariz do neto de colo que dormia numa enxerga.
Eram assim os Becos dos Contrabandistas, no tempo em que o ditador de Santa Comba debitava ditames, com voz trémula de fantoche de feira e a Diva Amália exultava: "Os filhos sorriem e o Manel também, Não há melhor vida ca 'aquela ca gente tem!"
Como escreveu Isabel do Carmo "vivi nesse país e não gostei!"

Trago lembranças terríveis desse tempo e todas elas doem, sejam escritas ou jamais reveladas.
Passou-se fome nas cidades mas havia umas senhoras benfazejas, que a troco de rendas e bordados, executadas pela vista cansada de velhotas carentes, pagavam com leite em pó e outros víveres, que ajudavam a minorar uma pobreza envergonhada que tantas vezes recorria às casas de penhores.

Há ano e meio, os 63 anos que desfrutei na Praça da Armada, sofreram duro revés. Afinal, era infeliz e não sabia...
Ocupado com o trabalho, o estudo, o associativismo e outras tarefas, apercebi-me que teria de reagir, quando decorrido mais de meio século, voltou a chover no meu quarto, retrocedendo à infância de menino pobre.
A rua Prior do Crato tornara-se numa espécie de enclave asiático, desaparecendo os sinais da Alcântara genuína.
Deambular por Lisboa é confirmar o pessimismo de Pérez-Reverte, que considera o excesso de turismo a morte da cultura das cidades europeias.
Este livro encerra um longo ciclo. Outra história começou em Almada. Talvez um dia fale disso..."

Luís Filipe Maçarico, 12-10-2017

[Fotografias de RB, AIV, Joaquim Avó e LFM.]


1 comentário:

Laura Garcez disse...

Catártico, sem dúvida. Momentos de espantos e maravilhas. Em suma, uma noite feliz, sobretudo para ti.
Parabéns por este livro, singular no conjunto dos teus outros trabalhos.
Obrigada pelo convite.