Ocorreu na Biblioteca Municipal de Beja, na passada sexta feira 29 de Janeiro, a apresentação de "É de Noite Que Me Invento", que foi lançado na Casa do Alentejo, em Lisboa, a 29 de Outubro e dois dias depois na "Casa do Cante", em Serpa.
Antes de tudo, Filipa Barriga disse um poema do livro e apesar de lhe ter sido pedida essa intervenção, poucos minutos antes, deu o melhor de si e foi aplaudida pela assistência. Curiosamente, Filipa interpretou, inserida no Grupo de Teatro "Águas de Março", o poema "Oração" com que o "É de Noite" fecha.
Entretanto, a Drª. Maria Paula Santos, responsável pelas "Sextas com Livros", saudou os presentes e apresentou a mesa, composta pelo Professor José Orta, antigo director da revista "Arquivo de Beja", que lecciona no Politécnico local, que dirigiu ao Poeta, palavras muito sentidas, celebrando uma amizade que se teceu de vários encontros e projectos, alguns ainda por realizar. Por seu turno, e antes do autor intervir e de algum diálogo com a assistência, Miguel Rego leu o seguinte texto:
"No seu “reino da estupidez”, editado em 1961, Jorge de Sena
incluiu uma crónica de dez anos, poesia portuguesa e lugar comum, em que afirma
que: somos um país culturalmente pequeno, onde a probabilidade de ser-se grande
é muitíssimo reduzida e onde é muitíssimo mais reduzida a probabilidade de se
não ser nivelado com o pano de fundo.
Cada tempo tem as suas modas, os seus referentes, a
ambiência cultural e social que contextualiza o nosso estar. Talvez por isso, o
papel de quem escreve, de quem pensa as coisas, de quem provoca, de quem ensina
e reflete apreendendo, se vê tão cheio de olhares acutilantes, por norma pouco
adocicados, que apenas resiste se tiver um bom par de meias, para não dizer
cunhas, que resistam como solas cardadas.
Escrever é difícil “neste reino”, mais difícil é ser-se
lido. Mas é fundamental que alguém o faça. É necessário que a escrita seja o
motivo para o encontro, para a reflexão, seno da discórdia inteligente, que
sena praticava. E por isso ostracizado. E é no paradigma entre a essência de um
momento em que produzir é uma necessidade e criar é uma obrigação, mesmo sendo
ignorado, é nesta representação, de um tempo imensamente vivido, que encontro aqui
o Luís Filipe Maçarico.
Trago aquela citação de Jorge de Sena, porque é
importante que se repita até à exaustão, que há momentos em que a memória é
muito mais do que uma simples invocação. É o marcar de um tempo, deste tempo,
em que, cada vez mais, é necessário lembrar aqueles que tiveram a coragem de, ao
longo da sua vida, ser “inteiros”, como dizia um Pessoa, ele Pessoa. Porque a
memória do nada não existe. Porque lembrar torna-se de forma emergente, um
exercício de cidadania na sociedade do instante, do banal, da ausência silibina
de memória. É por isso que a comunicação é a recusa do esquecimento e a arte do
escrever é um exercício do todo em que a grandeza de um nome é, logo à partida,
sinónimo de identificação.
Por isso trouxe sena para abrir uma espécie de palco de
vida onde coloco a figura do Maçarico.
Quando nos conhecemos pessoalmente já lhe lia alguma
escrita. Já o reconhecia nalguma escrita que aqui e ali ia encontrando. Tá aí
um tipo que havias de gostar de conhecer, disse-me um dia na estação do Metro
do Rossio o Fernando Grade, debaixo da sua boina guevariana e barbas à adriano,
anos oitenta passados. Mas seria em Barrancos o início de uma amizade e de um
respeito que permanece há quase vinte anos e que é a razão maior de estar aqui
hoje.
Não sou crítico literário e tenho dificuldades em fazer
escrita literária. Acho-me incompetente em história da literatura, como tal, tenho
alguma dificuldade em encaixar o poeta numa escola, num estilo, arrumá-lo numa
gaveta. Uma tarefa difícil, diga-se, não apenas pela sua volumetria, salve
seja, mas sobretudo, pela diversidade do tempo e pelo tempo diverso que recebeu
e transmite a sua escrita, balizado entre um momento em que o homem descobre a
rua e a coragem, na madrugada acolhedora da esperança, aquele dia inicial
inteiro e limpo, como lhe chamou sophia, e o momento em que se refugia em casa,
pensando que tem os destinos do mundo na polpa dos seus dedos.
Ao mesmo tempo, a sua escrita recusa a perplexidade da
língua para descrever o cristalino dos dias; não é indiferente ao abjecto
silêncio dos homens perante o sofrimento dos outros homens e a escrita, essa
dita poética, é um pouco mais do que a sua simples arrumação lexical.
Como tal, é nestas premissas que leio o Maçarico. Conheço-o,
como tal, com vários olhares. Em algumas das suas mais diversas nuances.
Temos colaborado de há algum tempo a esta parte em vários
projectos, nomeadamente num trabalho que apelidámos de Morada da poesia e que
juntou alguns amigos “alentejanos” para homenagear Manuel da Fonseca.
Manuel, nome de terra e sol, morada da poesia, ardendo na
pegada, escreveu Maçarico naquele ano de 2011 na edição da Câmara Municipal de
Castro Verde.
Aí Luís Maçarico entranha-se neste ser sul dos
camponeses// sentados no largo da aldeia/ ao postigo da casa ou comendo o
cozido de grão, falando como se fossem pássaros,
homenageando o poeta Manuel da Fonseca
o poeta que falou de futuro // na página mais gritante do
silêncio// e iluminou todos os nomes// todos os montes// todos os olivais todos
os montados.
Esse trabalho, que então coordenámos juntos, são uma
espécie de corolário numa relação de amizade quase paternal, pela forma
solidária, como se predispõe a fazer, pela forma comprometida como se envolve
no fazer, pela recusa insofismável do esquecimento. E é nesses momentos do seu
estar, do seu saber estar, que encontro, como num espelho, o reflexo do homem
que temos à nossa frente, e que sabe juntar numa única frase a palavra amizade,
memória e solidariedade.
De há muito que o reconheço nesta maneira de estar que
transvasa a sua escrita e o seu estar nas coisas e aventuro-me a dizer que
Temos em comum a respiração daquele lugar
Poema aceso do seu livro a secreta colina.
Com esse caldeador de palavras com sabor a sul, tenho a
experiência deliciosa de juntar gente despretenciosa, no Museu de Entradas, há
três anos, na apresentação do seu livro “Transumância das pequenas coisas”.
Ali, algumas crianças e gente maior desfolharam alguns
dos seus 23 poemas e encheram aquele espaço de representação museográfica com
palavras.
Verás oliveiras e limoeiros// na tua viagem// em busca de
inspiração// e sentirás as aves irrequietas// Hortas de sol e paz// encontrarás//
onde castanheiros singram// e ciprestes dançam// Inundando a luz da tarde// a
coluna// de gado// entrará no estábulo// então abrirás em plena eira// o livro
da memória// e do futuro.
Ali estivemos a ler os seus Poemas
que são ovelhas tresmalhadas// à procura de casa
Oração ao cosmos// procurando harmonia nos abismos.
Uma harmonia que encontramos no seu fascinante livro
“Ilha de Jasmin”, fruto de uma viagem incessante que Luís Filipe Maçarico fez
durante vários anos entre Portugal e a Tunísia e que editou num tempo em que a
Primavera tunisina, que não foi árabe, abria as suas portas à esperança. Um
livro onde estende pontes entre o lado de cá e o lado de lá, “
Paisagens de areia, de castanhos de café e pó e branco e
anil dos castanhos que só o norte de áfrica tem, povoada de sombras e imagens
eternizadas na leveza da história que carrega.
No diálogo interior que
mantém consigo mesmo, diz Luís Filipe Maçarico// diz-nos:
«Reconhecerás o aroma das
/ especiarias nos mercados / plenos de zumbidos. / O tempo eternizado num olhar
/ numa palavra / dolente, cantada / sagrada.»
Ou então
«São ancestrais os gestos
/ do pescador da ilha / de jasmim. E o mar / guarda ainda / a mesma esmeralda /
que Ulisses não pôde levar… / Bebo chá de menta / aquecido numas brasinhas / e
escuto as vagas onde / as redes de Atef / se enleiam nuns versos / de Garrett.»
E ainda,
“entrei no sol das ruas /
com a luz das palavras fraternas».
São estes os olhares reflectidos nestas palavras que
reconheço este poeta.
Mas hoje estamos aqui a propósito de “É de noite que me
invento”. Um livro que me surpreende apesar de conhecer o Luís Maçarico há
alguns anos.
Porque este livro traz-nos um poeta, quase naif, de antes
de todas as poesias, trazendo o amor, e a revolta, e a incessante busca da
liberdade apesar de ser feita de
“serenas palavras”
palavras doridas pela impotência dos homens em impedir a
intromissão dos deuses no consumar dos seus desejos. Mas homens
“que apenas se encontram ou reencontram às seis da tarde,
quem sabe, para de forma conformada regressar a casa”.
Este livro vem em contraciclo com aquela que é a escrita
do Luís Filipe Maçarico, mas é a génese de um trabalho que ao longo de trinta
anos recusa o banal
Onde a linguagem de gestos simples ganham uma dimensão
majestática, mesmo que sirva apenas para mostrar a miséria e a incapacidade de
mudar o imutável
O gato preto imprevisível
Ou
O autocarro dos dias iguais
Onde a manhã apesar de soalheira
Era de faces cinzentas
E uma mulher de meia-idade
Vendia cravos
Na banca improvisada
À esquina do chafariz
Dum apertado e obscuro casario.
Tanta Lisboa aqui vivida… digo eu.
Trouxe aqui um pouco do Luís Filipe Maçarico da forma simples
e não simplista como o vejo num misto de companheiro de sonhos e de camarada de
confidências. Não é mais do que isso esta minha intervenção.
Mas é um momento em que ouvi-lo
Me faz voltar a casa com os bolsos transbordantes de
palavras.
E essa é a melhor imagem que a sua escrita me pode dar
“e de repente
reparo// num pássaro perdido// à procura da sua árvore”
Como é ele. Como somos todos nós sem poesia. Sem a
poesia. Como somos nós menos a sua poética forma de estar.
Volto a sena do início desta nossa conversa. Somos um
país pequeno, mas de homens maiores. Um país invejoso, mesquinho,
Montra de detritos//
Diz Maçarico
“onde no seu aventalinho// desbotado// a vendedeira
guarda uma nota de cem
Da tesourinha
Articulada
Rangendo
A dentadura lúmpen.
Mas um país em que há homens, como o Luís, que constroem
imagens que reflectem um tempo em que o amor é canção e liberdade lembrando o
sul de todas as palavras que vestem a sua poética. Tão Sul, tão palavra.