"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

terça-feira, agosto 14, 2007

Lucília Lucas: dezanove dias depois...



Lucília Moreira Lucas faleceu no passado dia 27 de Julho. O Avante resumiu em meia dúzia de linhas uma existência de 82 anos e os jacarandás da Praça da Armada foram testemunhas da sua segunda morte: as folhas de papel, onde guardara as suas reflexões acerca das desigualdades sociais que permanecem neste mundo, foram deitadas ao lixo.
Encontrei duas dessas palpitantes folhas espalhadas pelo chão do Jardim, junto ao papelão, onde foram depositados versos e livros de toda uma vida de entrega aos ideais que defendia.
Meia dúzia de linhas no jornal que ela (que nunca foi líder, a não ser de excursões, de opiniões e de pastéis de bacalhau e rissóis de comer e chorar por mais) gostava de ler e o testamento (que não era de prata, ouro e diamantes), de palavras, ora desencantadas, ora doces, com alguma esperança, resultado de um percurso, implacavelmente atirado ao contentor da reciclagem.
Eis o que valemos, quando os filhos que trouxemos a esta terra preferem a memória asséptica, de um fantasma inerte, como se apenas a morte fosse verdade.
No passado dia 1, escrevi este texto, que é um pequeno contributo para recordar a amiga:
LUCÍLIA LUCAS, UMA PESSOA DOCE, ZELOSA E PERTINENTE QUE SONHOU DIAS LIMPOS PARA TODOS

Lucília Lucas foi uma militante incontornável no contexto da freguesia dos Prazeres.
A sua disponibilidade para ajudar o Partido, confeccionando iguarias e petiscos, para angariar fundos é lendária.
Zelosa, com prejuízo para o seu bem-estar, enfrentou inúmeros obstáculos, escudando-se com uma esperança teimosa que não a sossegava até atingir a meta que lhe propunham.
Mulher participativa, Lucília estava onde era necessário, nem que fosse para dar aquele abraço solidário ao amigo que apresentava um livro, declamando Ary dos Santos e "As Portas que Abril Abriu" nas colectividades, cantando a Mãe Preta em refeições de confraternização…

Permanecerá na memória de quantos viveram essa experiência singular, a excursão a Montemor-o-Novo, cujo objectivo era conhecer a Biblioteca acabada de inaugurar.
O grupo visitante era maioritariamente idoso, integrando um número considerável de analfabetos, que valorizavam o facto dos seus netos passarem a ter ao dispor instrumentos de enriquecimento cultural que noutros tempos não fora possível fruir.
Lucília esteve na linha da frente na organização desse acontecimento, animando a viagem, sonhando dias novos, assim repletos de luz e alegria, contribuiu decisivamente para espalhar a mensagem fraterna da igualdade, foi generosa, expôs-se sem medo, defendendo o seu ideal, justificando a caminhada.

Admirada e respeitada pelas suas intervenções na Assembleia de Freguesia, era, não obstante a pertinência das questões que colocava, uma pessoa doce que pugnava pelo regresso à política, no sentido da justeza dos projectos e das posturas de rigor, honestidade e transparência dos protagonistas.
A saúde precária fragilizou-a durante anos - o coração dos lutadores não resiste à erosão do tempo - e Lucília repousa agora no único lugar onde a terra que cantou em hinos de luta e liberdade, a afaga e compensa, pois ela é afinal a grande verdade nesta passagem ensombrada por escolhos, desigualdade e injustiças.
Lucília Lucas deixa o seu nome nos perfumes primaveris que inundaram de beleza as nossas vidas, em cada voo de pássaro, em cada riso de criança, pois o futuro que sonhou há-de ser um dia tão real como os sonhos que cantou.

Lisboa, 1 de Agosto de 2007
(Texto e Fotografia - no primeiro Encontro de Poetas em Alpedrinha, 1994 - de LFM)

2 comentários:

maria sousa disse...

Hoje, em Montemot-o-Novo, chove.
São lágrimas pelas 6 linhas e pelas folhas no chão.
Guardemos nós a memória da amiga e deixemos os esquecimentos ao distraídos.
Obrigado pela partilha. Um abraço

Pete disse...

São pessoas como essa senhora que fazem-nos parar e reflectir o que vai mal neste mundo. A experiência de vida que têm ensina-nos muito e a sabedoria não é só o que vemos e lemos nos livros é também a cultura popular e os ensinamentos de vida que as pessoas com mais vivências nos transmitem. Que descanse em paz.