"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

sábado, fevereiro 18, 2006

"Memórias do Contrabando em Santana de Cambas"- A Opinião de Sónia Frade


É com imenso prazer que partilho o texto que a antropóloga Sónia Tomás Frade (fundadora, membro da direcção da Aldraba, empenhado elemento do Grupo de Trabalho Adeodato Barreto) apresentou, durante o inesquecível lançamento do livro "Memórias do Contrabando em Santana de Cambas",em 17 de Dezembro de 2005:

"Quero começar por saudar todos os que estão aqui presentes e agradecer o amável convite que me foi feito para apresentar a obra “Memórias do Contrabando em Santana de Cambas – um contributo para o seu estudo”, editado pela Junta de Freguesia de Santana de Cambas. Uma obra fundamental e um contributo valioso ao estudo aprofundado do contrabando, prática que faz parte da identidade dos povos da região da Raia.

Quero saudar também, com bastante apreço,a junta de freguesia de Santana de Cambas, que com este projecto, tem por objectivo não deixar morrer a memória de um povo, da sua identidade e do seu património, infelizmente, pouco comum no nosso país.

Por último, quero dar os meus parabéns ao Luis Filipe Maçarico, Antropólogo, Poeta, amigo e autor da obra, pela sua firmeza em gravar na escrita as nossas tradições, os nossos costumes, o nosso património, e ofereço-lhe, com muita humildade, um singelo verso do seu poeta, Eugénio de Andrade “(...) o sonho é sempre verdadeiro se no exílio a voz foi de coragem.”

Este livro é o resultado das memórias de um povo, é o retrato de uma época de sofrimento, mas também de arrojo, de risco e de aventura. São narrativas que já fazem parte do imaginário das pessoas que, tal como eu (no meu caso relacionadas com o contrabando praticado pelo mar), cresceram a ouvir histórias rocambolescas, quase inacreditáveis mas acima de tudo, reais.

O contrabando é parte fundamental na história e na cultura das terras no limiar da fronteira. As suas práticas modificaram a estrutura económica e a realidade social. Quando a fome e a miséria desabou sobre a raia, muitos emigraram, enquanto os que ficaram tentaram sobreviver dedicando-se ao contrabando.

Durante gerações foi o principal sustento das suas gentes. Foram muitos exercícios diários de carrego às costas, de iludir a guarda fiscal e os carabineros por caminhos escuros e sinuosos, de perigos até da própria vida, e tudo isto para alimentar e criar os filhos, para continuar simplesmente a existir. Histórias de vidas de fortuna mas também de vidas atingidas pelos limites da sobrevivência. Não existe povoação na zona da Raia, que não traz à memória histórias de sofrimento, em busca de mercadorias que lhe trazia o sustento.

Do contrabando e da sua dimensão social nasce outro fenómeno: a cumplicidade e a intimidade com o “outro lado”, expressão usada pelo autor, o outro lado da fronteira. Exerce uma influência profunda nas relações sociais entre os povos da Raia.

Estas relações económico-sociais foram fortalecidas e complementaram-se, inclusive nos padrões culturais, sendo até possível de falar de uma cultura de fronteira. Segundo a professora e Antropóloga Paula Godinho, a identidade fronteiriça apoia-se em relações ilegais, de risco e em memórias (fulcrais) da fome.

Não existem muitos estudos sobre o contrabando, e são raros os investigadores sociais que se têm debruçado pelo assunto. Assim sendo, este livro tem o mérito de ser um projecto pioneiro no concelho de Mértola e de abrir as portas para futuros trabalhos de recolhas e de investigação que são fundamentais para a preservação da história social, cultural e económica da raia alentejana.

Toda a zona raiana é um museu vivo repleto de histórias de contrabando que passaram de geração em geração. É essa a memória oral que deve e tem que ser preservada.

E são essas recordações de um mundo e de um tempo tão adverso que o Luis tornou eternas.

Termino com um depoimento retirado do livro, que penso ser a melhor forma de contextualizar o que disse anteriormente.

“A minha mãe ficou viúva com trinta e oito anos, era mãe de seis filhos, a mais velha com dezassete anos e o mais pequeno, de dezasseis meses. A minha mãe, a maneira que arranjou de ganhar o sustento para nós, trabalhava para um lavrador que estava aqui na terra – Montes Altos – amassava o pão, ia à ribeira lavar a roupa e ia ao contrabando.

A minha mãe levava café, açúcar. De tudo um pouco. Mas mais o café. Porque a Espanha nessa altura, foi quando a guerra civil, estava numa miséria. E depois traziam calçado de borracha, daquela sola que parece corda. Alpergatas! A minha mãe deve ter feito contrabando, ora à volta de uns oito anos. E passavam três ribeiras: Chança, Malagão e Cúbica, com a água debaixo dos braços, quando chovia muito. Tinham pontos onde elas podiam passar, eram pessoas cheias de coragem!”

Sónia Tomás Frade

Querida Sónia: Bem Hajas por esta partilha e sobretudo pelas tuas palavras amigas, que me visitam com regularidade, transmitindo-me coragem, estímulo para fazer mais e melhor.
Retribuo desta forma, que sendo singela é sincera, pois no meu vocabulário comportamental não há lugar para salamaleques e adulação. Há quem diga até que sou um bocado "bota abaixo", talvez por neste país ser bastante apreciada e premiada a postura do "deixa andar", do fingir que não é nada connosco, chacun que se amanhe, etc.
Sónia: Gosto de ti, do teu trabalho, da tua postura humana e da partilha de conhecimentos que diariamente demonstras saber fazer. É por isso que tens um lugar grande no coração deste teu amigo.
(foto de JF)

1 comentário:

Sonia F. disse...

Obrigado pelas tuas palavras amigas, Luis. Deixaste-me sem palavras...