Apresentação do livro É de Noite que me Invento, de Luís F.
Maçarico
O
maior desafio da apresentação do livro do Luís, não é apreciar a sua escrita,
nem as suas características enquanto poeta, mas é distanciar-me da apreciação
que estou a fazer, uma vez que a minha história confunde-se também com muito do
que o Luís escreve. E a leitura deste livro em particular não deixa de ser um
mergulho no meu próprio passado. Muitos dos poemas que aqui encontramos são um
pedaço de tempo em que eu também participei. Conheço as histórias que
conduziram às emoções partilhadas nestes poemas. Ao lê-los, dou por mim a
reviver também alguns dos momentos da minha própria história. O eco dos
sentidos, dos pensamentos, das emoções expressos nestes poemas ainda me assomam
à memória. Tenho que confessar, portanto, que não poderei ser imparcial. Tentarei,
no entanto, olhar para as palavras que aqui nos são doadas com a imparcialidade
possível de quem olha, por vezes, para si próprio, mas de uma outra dimensão.
E
a poesia é, de facto, uma outra dimensão da realidade na qual nos é permitido
eventualmente participar. É, todavia, uma dimensão tremendamente real, porque
vem despida de falsidade e cuja racionalidade, indispensável para a compreensão
humana, vem filtrada pela emoção de quem sabe ser essa a essência própria do
Ser.
Conseguir
traduzir para a neutralidade dos símbolos verbais a essência do que somos é,
pois, uma das maiores virtudes da poesia do Luís. As palavras perdem assim o
significado literal que a conceptualização lhes atribui, para se transformarem
em seres viventes, dotados de autonomia e significado próprio. Compreendê-las é
conectarmo-nos com o que misteriosamente ocultam. Diz-nos o poeta em Caligrafia do Silêncio:
Escutas
o coração
Batendo
descompassado
Tens
a noite nas veias
A
gastar-se
Como
areia entre os dedos
Escutas
o que não podes ouvir.
Assim,
as palavras que dançam nos poemas do Luís surgem por vezes nuas, embora prenhes
de significado, vazias, porque surgem como veículo do não dito, do próprio
silêncio, embora prenhes da vida quotidiana também dos outros. A poesia do Luís
fala da vida de todos nós, mas como se cada instante da vida de todos nós
tivesse a beleza da originalidade que ninguém mais partilha:
E
dou-te voz, oh discreta
Anónima
Mulher
Dos
eletrões
Transformados
Em
crochet
No
pandemónio
Dos
engarrafamentos
Ouvindo
palavrões
Mastigando
Lentamente
A
tosta
Da
dieta
E
da paciência
Enquanto
eu
Transpiro
Utopias
Para
voltar a casa
Com
os bolsos
Transbordantes
De
palavras
Estou
Onde
está
O
povo.
(Excerto
do poema Oração, in É de Noite que me Invento,)
Falámos
aqui duma dimensão mais intimista da poesia do Luís, aquela que, porventura, se
pode coadunar mais a este livro e a outros como Da Água e do Vento, A
Essência, Íntim(a)idada, A Secreta Colina, Geografia dos Afetos ou Caligrafia
do Silêncio. No entanto, o Luís sabe descer também a uma dimensão mais
terrena, consciente da dimensão social do homem, escreve também sobre os
valores que nos tornam coletivamente humanos. Lembro-me que a nossa amizade
começou numa “Marcha da Paz”, há já alguns anos. A luta pelo bem-estar social e
pelo bem comum tem sido uma constante dentro da sua versatilidade poética e
humana, não só aqui do lado mais próximo de nós, mas também do lado que fica um
pouco mais distante:
Teu
nome, Palestina,
Também
faz parte de mim:
Não
é possível sorrir
Se
choras; não consigo
Cantar
se morres.
(Excerto
do poema Teu Nome, Palestina, in Geografia dos Afetos)
Não
completamente desligada desta vertente social, surge talvez uma das suas mais
significativas marcas, a poesia ligada às viagens, onde está presente o seu
lado cosmopolita de cidadão do mundo e a afirmação imponente das suas raízes.
Tunísia, Itália, Beira Baixa, Alentejo e, claro, Lisboa, são alguns dos pontos
do nosso mapa humano evocados em livros como Mais Perto da Terra, Lisboa
Asas de Água, Os Pastores do Sol,
Vagabundo da Luz, O Sabor da Cal, Os Peregrinos do Luar, Lisboa,
Cais das Palavras, A Celebração da
Terra, Pegadas de Luz, Ar Serrano, o belíssimo Cadernos de Areia e Transumância das Pequenas Coisas. Em todos estes livros se
manifesta a sua vertente de pintor. O Luís sabe pintar com as palavras e é nos
livros relacionados com as viagens que talvez seja mais fácil detetar esta
qualidade poética, embora naturalmente cada livro seja uma mistura e uma osmose
de todas estas características.
No
poema Ksar Guilane, do livro Os Pastores do Sol, oferece-nos esta
tela:
Eu
vi o deserto
A
sua pele de ventos
E
os corvos nas dunas
Eu
vi a esmagadora
Boca
de areia
Na
tarde de lumes.
Temos
ainda um Luís biográfico, contador de histórias da sua própria vida, cujo livro
mais significativo talvez seja o Degraus.
Aqui, o Luís é, por vezes, quase criança, estatuto que, aliás, nunca abandonou,
com todas as vantagens e desvantagens que isso possa acarretar. O Luís continua
uma criança grande que carrega eternamente a sua própria infância:
Via
os outros
Chamavam-me
Mas
eu não podia sair
Era
um menino bem comportado.
À
janela
Ouvindo
pássaros
Vendo
gente e árvores
Mas
a querer ir com
Os
outros, ir com
Os
pássaros de lugar
Em
lugar a desinquietar
Os
meninos fechados em casa
Para
serem bem comportados.
(À Janela in Geografia dos Afetos)
Este
seu estatuto de criança permitiu-lhe ainda escrever para estas. Calculo que na
dificuldade da linguagem própria das crianças, ele se sinta dentro da sua
própria essência. Para quem não conhece recordo livros como A Princesa Joaninha e o Lagarto Saltitão,
Azedal Sarzedar e a Manhã de Abril, A Rapariga das Magnólias, A Janela do Armador, O Mistério da Rua Suja, O Sonho de Timor e Flor de Sementinha.
E
o amor… que poeta não escreve sobre o amor? Nos poemas de amor do Luís somos
eternamente jovens, mas ao contrário de Dorian Gray, de Wilde, assumimos os
dias que desenham as suas marcas no corpo que envolve uma alma sem idade:
Esta
noite, na velha pedra das igrejas
As
estrelas vão florir longe da água
Dos
nossos olhos. Já não somos esses
Dois
sorrisos que ofereciam sonhos às
Estátuas…
E
se ainda deixamos pegadas na memória
De
antigos versos, é porque teimamos
Em
rezar a uma lua que é sempre bela.
(Jardins de Outono in Caligrafia do Silêncio)
Longe
de ser exaustiva relativamente aquilo que é o Luís e a sua poesia, saliento
apenas o carater experimental da sua atividade poética. O Luís sai da sua zona
de conforto e arrisca ser diferente, seja através das pinturas em toalha de
papel que desenha com café, seja através de uma brincadeira que há anos
inventámos e que autodenominámos “manancialismo”.
Ousámos então, nessa altura, sermos os percursores de uma nova corrente literária
que consistia na construção de poemas a partir de um manancial de palavras que
considerávamos significativas do ponto de vista poético. Julgo que foi por essa
época que, em conjunto com mais duas amigas, escrevemos um livro de 69 quadras
dedicadas às galinhas, que se chamava O
Suave Milho D’Outrora, de que guardo religiosamente o manuscrito escrito
pelo Luís. É coisa para dar cabo de qualquer reputação poética. Os poemas manancialistas
não eram, portanto, nada de espetacular, mas esse exercício ajudou-me a crescer
na arte da escrita e também contribuiu para que hoje consiga apresentar com
alguma leveza e fluência esta articulação de palavras que hoje aqui vos trago.
Finalmente,
existe claramente uma evolução poética, ao longo do percurso do Luís. Assim,
não poderei afirmar que este é o melhor livro do Luís. O que vos posso dizer é
que é um livro que vale a pena ler, mas acreditem que a poesia mais recente do
Luís é ainda melhor. Embora sendo naturalmente um poeta, hoje ele é um poeta
qualitativamente melhor, a sua técnica aprimorou-se e a maturidade trouxe-lhe a
lucidez e a arte que só anos de vivência permitem a quem os sabe aproveitar.
Os
anos e os laços que nos unem permitir-lhe-ão desculpar-me a inconfidência de
vos dar a conhecer um poema de há já muitos anos, belo como tudo o que o Luís
escreve, mas onde a diferença entre a poesia da juventude e a da maturidade
estão patentes, embora a identidade que o constitui nunca o tenha abandonado:
A
Língua
Sem
ela o homem
Não
podia dizer sol
Sem
ela o menino
Não
podia chamar
Amigo
ao outro menino
A
língua
É
um pássaro
Que
vai até
Reitero
o que disse no início, é-me difícil, pela proximidade, fazer uma apreciação da
poesia do Luís. Não o vejo como poeta. Para mim o Luís é o Luís e ponto final.
Mas ontem fiz um esforço e com os seus livros na mão, embora não tenha gostado
de todos de forma igual - tenho, entre eles, alguns amantes secretos -, pensei
ou, mais do que isso, senti, juro-vos que senti que tinha nas mãos um dos
melhores poetas portugueses.
Cristina
Pombinho
29
de outubro de 2015