Eis o texto da apresentação, da reedição do livro "Os Pastores do Sol", apresentado no 8º Festival Islâmico, no passado dia 22 de Maio de 2015:
PASTOREANDO
A PAZ, NO ENCONTRO DE CULTURAS. UNINDO O MEDITERRÂNEO COM A POESIA
Foi numa ida ao Quartier Latin, no final dos anos 80 do século passado, e após um
excelente repasto, no restaurante Chez
Saad, que decidi visitar a Tunísia. Aquela tão mediterrânica salada
tunisina e a hospitalidade luminosa, conquistaram o coração dos comensais, que
haveriam de ser companheiros na futura viagem, em Agosto de 1991.
Munido de um caderno de viagem, onde
colava rótulos de água mineral ou dos torrões de açúcar do café de Paris da
avenida Habib Bourguiba, bilhetes de
comboio informatizados ou de autocarro, entre a capital e os confins à beira do
deserto, comecei por escrever as minhas impressões poéticas, em El Kef, Houmt Souk ou no oásis das 200 mil árvores e das 200 nascentes de
água doce, frente ao Chott El Jerid e
ao Sahara.
Novas viagens fizeram-me conhecer quase
todo o território, de Jendouba e Bizerte a Tataouine, Chenini, Douz
e Khsar Guilane. Numa delas, em Abril
de 1903, com as colegas de licenciatura, Alexandra Leandro e Cláudia Casimiro,
conhecemos entre Tunis e Sfax, no comboio para Gabés, a professora Fatma, com os seus três filhos, Wafa,
Mouna e Aïmen, com quem interagimos. Rabisquei o poema “Les Bergers du Soleil” e um desenho de café.
Um mês depois do regresso, recebi em
casa, uma carta do pai das crianças, convidando a visitar o arquipélago das Kerkennah, pois as meninas e o rapaz, ainda
falavam de nós… Estava encontrado o tradutor para árabe, - o conselheiro
municipal de Remla e docente de
francês do secundário, Professor Ezzeddine
Mansour, cujo rasto perdi durante mais de uma década, até há cerca de um
mês atrás, quando me escreveu, revelando que os filhos, agora adultos,
organizaram as suas vidas e ele mesmo está aposentado. Haverá coincidências?
Reunidos os versos, a partir de alguns
cadernos iniciais, dos 14 que fui redigindo, havia que apurar a tradução em
francês. Juntei então dois bons amigos: Rodrigo Dias, pintor (autor de capas de
livros meus) e também poeta, que viveu em França e Raja Litiwinoff, cidadã
alemã, de ascendência russa, que se ocuparam dessa fase fundamental, dado que o
livro chegou a viajar até Poitiers, à Festa do Mundo, na Rua dos Três Reis,
graças a parceria da Escola de Formação Profissional do Fundão, então dirigida
pelo Dr. João Manuel Santos Costa, que foi a editora da segunda edição dos
“Pastores”, com Le Toit du Monde, ONG enraizada na Comunidade gaulesa e entre a
emigração existente naquela cidade. A apresentação em França, ocorreu em Maio
de 1996.
Um ano antes, na Biblioteca de São
Lázaro, a mais antiga de Lisboa, com o adido cultural da embaixada tunisina, Mohamed Bougamra, no castelo de Leiria,
com o TE ATO e no Teatro Clube de Alpedrinha, “Os Pastores do Sol”,
estrearam-se em Portugal, tendo os jornais de Leiria feito eco do agrado, que a
aparição de uma obra trilingue tinha causado. Carlos Fernandes, no Região de Leiria, afirmou que se tratava
“ de escrita muito parcimoniosa, mas com um espaço imagético lampejante (…) É
espantoso como, em meia dúzia de versos, ele nos desenha autênticos frescos,
repassados de luz e de movimento”. Orlando Cardoso, no Jornal de Leiria, celebrou os “poemas repletos de uma claridade só
possível na cal dos caminhos do Sul” e Fernando Paulouro Neves, no Jornal do Fundão assinalou que “como em
Eugénio de Andrade, emerge da poesia de Luís Maçarico um louvor às coisas
elementares, ao sol, à água e à terra.”
O Jornal La Presse de Tunis teve a mesma simpática ressonância. Em 1995,
assinala que se trata de “joli message
d’amour”. Mohamed Lotfi Chaibi,
um ano depois, exulta: “On ne s’en doute
pas, Maçarico (…) est un chantre de la mer, des rivières et des sources.”
Para mim, é inolvidável o momento da
entrada, no restaurante “Le Soleil”,
em Tozeur, quando deparo com o livro
numa parede, com marcas evidentes de ter sido amplamente desfrutado, lambuzado
de nódoas dos comensais, para quem estes versos constituíram sobremesa
espiritual. Ou a noite em que Kamel,
empregado do restaurante Central de Houmt
Souk, a capital da Ilha onde Ulisses viu sereias, me apresentou à família
camponesa, dirigida pela matriarca, tendo comido com eles, um couscous da mesma
gamela, celebrando o acontecimento do clã ter discutido na véspera, os meus
poemas.
Salem
Omrani, então estudante do curso superior de animação
cultural, veio duas vezes a Portugal, com a incumbência de ler versos deste
livro, - que acabou por prefaciar, - nas sessões poéticas, realizadas em
colectividades de Lisboa e Alpedrinha.
Nos vinte anos destes “Pastores” há
inúmeras estórias que se cruzam.
Ainda os poemas nasciam nos cadernos de
viagem, quando Nouri Slah,
recepcionista da Residence Warda, de Tozeur, me interpelou acerca da
estranheza daquela língua em que eu me exprimia e ele não compreendia. Pediu-me
então que traduzisse para francês a forma como olhava para a sua terra, pois
queria entender o que eu sentia. Quando se apercebeu do meu olhar, perguntou-me
onde iria eu jantar… “Au Soleil”,
informei. “La, la la…Vous alez chez moi.
Vous êtes mon invité. Il faut que vous allez connaitre ma famille et manger
chez moi.”
Em Portugal, no último dia do primeiro
ano de existência do livro, houve um suicídio interrompido, em que o jovem que
decidira atirar-se à passagem do comboio da Beira Baixa, quis primeiro saber o
que era um poeta, pois lera a propaganda colocada nas montras das lojas e
cafés, e graças à poesia, salvou-se!
Aconteceu também um choque emocional
profundo, quando no dia do meu aniversário, em Tozeur, encontrei um morabito dedicado ao poeta nacional tunisino Aboulkacem Chebbi, deixando por lá um
exemplar do livro, cujo director desejou todas as benesses de Allah ao viajante.
Ficou na Biblioteca Nacional em Tunis, no Ministério da Cultura, nas
mãos de Yvette Lejeune, uma francesa da Bretanha, com quem me cruzei em Jerba, no mesmo hotel/albergue das
antigas caravanas do deserto, que já visitou Portugal, graças ao nosso
encontro, onde eu pintava com café e ervas, e ela com especiarias…
Porém, um poema foi alvo da
patrimonialização por parte de uma magrebina, que assumiu o poema, em francês,
dedicado ao “poeta das areias sem mar”, como se tivesse sido ela a autora.
Com a globalização, usufruímos de uma
aproximação noticiosa, cultural e científica, nunca dantes experimentada, como
do abuso dos que não possuem limite para a sua gula plagiadora.
Na edição de 2014 do Festival da
Transumância, “Os Pastores do Sol” reapareceram, numa reedição que a GM, graças
à dinâmica e fraterna Glória, em boa hora fez renascer. A edição inicial fora
produzida nas velhas máquinas da Ramos,
Afonso & Moita, pelos saudosos senhores Mário e Fernanda, que tinham a
sua oficina na Rua da Voz do Operário.
A capa, da autoria de Francisco Pedro,
onde o vulto de um pastor, emerge de um recorte de uma notícia de imprensa
invertido, embora bela, afligiu-me, por nenhum de nós saber árabe. Já com o
livro impresso e uma centena de exemplares na mochila, foi ao chegar a Jerba,
que descodifiquei e acalmei os receios, pois temia que fossem informações
acerca dos conflitos que tornam o médio oriente num permanente caudal de
sangue. Mabrouk Ghomrasni sossegou-me: afinal falavam de futebol, aqueles
recortes. A risada geral ajudou a descomprimir noites mal dormidas, de
inquietação.
E assim chegaram a Mértola estes
“Pastores do Sol”. Termino com o excerto de um poema de Aboulkacem Chabbi,
escrito no tempo em que a Tunísia era uma colónia de França.
Porque encontro semelhanças com a actual
situação portuguesa, aqui ficam as suas palavras, que traduzi livremente, a
partir da versão francesa:
“Nasceste livre como a aparição da brisa
Livre como a luminosidade do céu matinal
(…)
Porquê aceitar a vergonha de uma vida
aprisionada
Porquê baixar a fronte diante dos que te
dominam?
(…)
Acorda, toma os caminhos da vida,
Pois a vida não espera por aqueles que
dormem
Sorve o perfume das rosas matinais
A dança dos raios solares
O espelho das águas!
Aboulkacem Chebbi
Luís Filipe Maçarico, 20-5-2015