É a região do Douro uma escultura única, produzida por milhares de seres humanos, ao longo de gerações.
Os socalcos falam-nos da luta de trabalhadores rurais, que com os seus braços e com pegada ardente, plantaram vida. Respiração do futuro.
Ao longo de séculos, pedra a pedra, torrão a torrão, as vinhas cresceram, multiplicaram-se, no milagre de uma paisagem humanizada. E tingiram-se de verde ou dourado, conforme a época, acompanhando o tempo, chuvas, sóis, ventos, frios. Do cobre ao cinza, a tela da existência palpitou, com a cor do rio serpenteante, marcando o espaço.
Dois homens da literatura, cujas vidas podem ser comparadas a essas
escadarias rasgadas na Natureza, souberam retratar como poucos na nossa
língua, o afã dessa gente.
Alves Redol, na sua triologia Port Wine, acompanhou a saga das transformações do território e a sobrevivência desse povo heróico. Embora deslocado do seu Ribatejo, soube olhar e descrever aquela realidade, a fraternidade entre explorados. Horizonte Cerrado, Os Homens e as Sombras e Vindima de Sangue são romances dessa fase... tal como Porto Manso.
João de Araújo Correia, na sua vivência desde criança, por terras tão familiares, como médico e escritor, conheceu a alma duriense intensamente e teceu textos incontornáveis, deixando-nos uma obra ímpar, que felizmente uma Tertúlia no Facebook partilha. Deixo aqui o endereço electrónico, para poderem desfrutar:
E também dois excertos das suas obras:
A TRAGÉDIA DAS ÁRVORES
A tragédia das árvores… Se eu fosse poeta cantá-la-ia em mil cantos repassados de dor. Já repararam no divórcio da árvore e do homem, no abismo que os separa? Dir-se-á ser a árvore como a mulher que nos adora e se esmera durante a vida para nos merecer um sorriso forçado. A guarda-roupa infinita dos seus vestidos, nem pela enormidade nos deslumbra a nós, modernos, eivados todos do delírio da grandeza. As suas atitudes, ora humildes, ora altivas, assim como os seus gestos de afagar e de oferecer, nem gratidão, nem respeito, nem piedade nos movem. Nas suas bocetas há perfumes orgíacos, um aroma para cada sensualismo. Inebriaram os deuses. A nós enjoam-nos. No âmago dos frutos dormem filtros que as pobres feiticeiras reputam infalíveis para prender os homens. Debalde sorvemos os sucos letais. Será o orvalho de que as árvores se aljofram choro de desespero? E a nossa brutalidade de fadistas? Sabem como se castiga a árvore que nos perturba o sono com um gemido, que nos arremessa ao rosto um punhado de folhas secas, que mexe na pedra de um muro? Matando-a. Nem lhe perdoamos que a sua ramaria nos amorteça o ardor do sol. Podia lembrar-nos que não sustentaríamos o olhar da nossa amada, sem a doçura dos seus longos cílios. À árvore nada se agradece, nem nada se perdoa. É como a mulher que se enamorou de nós. Pode enfeitar-se ou desleixar-se. Indiferença trágica …Ou é bárbara ou a nossa civilização é tal, que nos permite viver sem beleza, sem graça e sem amor.
CORREIA, João de Araújo In SEM MÉTODO
A tragédia das árvores… Se eu fosse poeta cantá-la-ia em mil cantos repassados de dor. Já repararam no divórcio da árvore e do homem, no abismo que os separa? Dir-se-á ser a árvore como a mulher que nos adora e se esmera durante a vida para nos merecer um sorriso forçado. A guarda-roupa infinita dos seus vestidos, nem pela enormidade nos deslumbra a nós, modernos, eivados todos do delírio da grandeza. As suas atitudes, ora humildes, ora altivas, assim como os seus gestos de afagar e de oferecer, nem gratidão, nem respeito, nem piedade nos movem. Nas suas bocetas há perfumes orgíacos, um aroma para cada sensualismo. Inebriaram os deuses. A nós enjoam-nos. No âmago dos frutos dormem filtros que as pobres feiticeiras reputam infalíveis para prender os homens. Debalde sorvemos os sucos letais. Será o orvalho de que as árvores se aljofram choro de desespero? E a nossa brutalidade de fadistas? Sabem como se castiga a árvore que nos perturba o sono com um gemido, que nos arremessa ao rosto um punhado de folhas secas, que mexe na pedra de um muro? Matando-a. Nem lhe perdoamos que a sua ramaria nos amorteça o ardor do sol. Podia lembrar-nos que não sustentaríamos o olhar da nossa amada, sem a doçura dos seus longos cílios. À árvore nada se agradece, nem nada se perdoa. É como a mulher que se enamorou de nós. Pode enfeitar-se ou desleixar-se. Indiferença trágica …Ou é bárbara ou a nossa civilização é tal, que nos permite viver sem beleza, sem graça e sem amor.
CORREIA, João de Araújo In SEM MÉTODO
Em toda a jornada lutou sempre com o penhasco e xistos, com fraguedo e granito, dando a cara a tudo aquilo que lhe quis barrar o caminho. E os homens das saus margens aprenderam este sentido de luta. Construíram os seus barcos e ofereceram batalha ao rio enlouquecido e raivoso no trovelinho das suas águas traiçoeiras.
(…)
É um caminho de alucinações e de sonho – cansa e conforta.
Por isso os marinheiros se apaixonam por ele como por uma mulher de mil feitiços. Dão-lhe tudo(…)
O Douro, porém, chegou cansado para ver o mar.”
REDOL, Alves, Porto Manso
Há homens que morrem duas vezes, perante o esquecimento.
Ferreira de Castro, quem o recorda, contando a epopeia dos emigrantes no Brasil em "A Selva"?
Manuel Ferreira, porque está o seu romance "Hora di Bai" tão olvidado?
Bem hajam então, os filhos dos dois escritores que referi, face à beleza das obras que os pais escreveram, acerca do Douro e suas gentes, pela divulgação que promovem, incansavelmente, honrando a passagem daqueles seres especiais, pelo desconcerto do mundo...
A ler, urgentemente, neste tempo de labregos que flagelam a língua. Para limparmos a alma, com o seu olhar e a sua escrita luminosa.
Luís Filipe Maçarico (introdução e selecção de textos)
Fotografias de um álbum de viagem, na região duriense.
Fotografias de um álbum de viagem, na região duriense.