Abílio Duarte, em Outubro de 2010
Naveguei pelas águas de Homero
Mareei límpidas marés de
Ulisses,
Recordação perpétua eu quero
Lembrar destes mares feitos
felizes.
Por mil ilhas Gregas serpenteei,
Por mar calmo, meu olhar
vislumbro Creta,
De súbito a minha musa
encontrei,
Senti a obrigação de ser poeta.
Quão pequeno e humilde me senti,
Ao pegar na pena que quis ser
recta
Ao fazer poema só p’ra mim.
Fiquei muito aquém daquele
poeta,
o épico marinheiro, eu perverti.
Mais rimar eu desejei,
Quando da ilha de Creta me
apercebi.
Poema do livro de Abílio Duarte "Marés da Minha Vida", edição de autor, Lisboa, 2010.
Imagens dos jardins do local onde o poeta fadista está internado
Esta tarde, fui visitar o poeta e fadista Abílio Duarte, internado nos
cuidados paliativos, de uma unidade hospitalar particular, em Belas.
Trago uma recordação luminosa deste Amigo, desde há dois anos com uma grave doença, que vai tolhendo a sua capacidade de locomoção.
Encontrei-o animado, com a mesma vontade de viver de sempre.
Em 2010, um punhado de amigos fez-lhe um livro de poesia, apresentado numa casa de fados da capital: "Marés da Minha Vida".
Esgotou-se a casa e o livro, mas não a energia do Mestre, que continua o homem esperançoso e lutador, que conheço há décadas.
José Manuel Osório, disse dele que tinha a categoria de um Linhares Barbosa, Carlos Conde ou Francisco Radamanto, e eu, sem saber que o especialista do Fado pensava da poesia deste velho mareante, lancei-me na aventura de levar a bom porto o barco dos sonhos, com a preciosa ajuda da Ana Isabel Carvalho e da Marta Barata.
A esposa, Conceição, mulher de aço, emotiva e dedicada, vende no mercado de Campo de Ourique, passando a vida a correr de Odivelas para o seu ganha-pão e depois para Belas, levando mimos e amor ao homem da sua vida.
Durante a longa conversa que tivemos, falámos de tudo, do Fado, das Marchas, do Associativismo, do Mundo, da Política, e a certa altura, diz-me o Abílio "O nazismo não precisa de uma Terceira Guerra Mundial, para se implantar. Já está implantado!"
Sábio Homem, este Poeta do Povo, de um tempo em que os seres humanos, provenientes de condições sociais desfavoráveis, nem por isso deixavam de ter formação e escala humana. Agora, pelo que vemos, ouvimos e lemos, a posição social elevada corresponde muitas vezes a uma incubadora de gente que desconhece a palavra dignidade.
Abílio Duarte, com a esposa, em Outubro de 2010
Deixámos o Poeta e Fadista, cuja infância passou pelo Bairro da Bica, com um sorriso, sereno, por ter tido visitas que não tendo sido nenhum milagre de 13 de Maio, consubstanciaram a vontade de quem estima e é amigo verdadeiro, acredita na força do Cosmos e na Harmonia da Natureza.
Tenho a certeza que hoje o sono do meu Amigo Abílio vai ser muito tranquilo.
Luís Filipe Maçarico (texto e fotografias)
Respigo estas passagens da introdução (de minha autoria) ao livro "Marés da Minha Vida":
ELEMENTOS PARA UMA BIOGRAFIA DE ABÍLIO DUARTE – FADISTA, POETA E
MAREANTE
Abílio Duarte nasceu em 28 de
Novembro de 1937, na freguesia das Mercês, em Lisboa. O pai, natural de Setúbal
“foi pescador e descarregador de peixe” e a mãe, originária da Madragoa,
“vendia peixe”. “Em miúdo, conta este filho do mar, cheguei a estar aqui na
Ribeira; apanhava baldes de água para lavar as tecas do peixe.” Criado entre a Bica,
Madragoa, o Casal Ventoso e Chelas velho, Abílio Duarte é neto de um algarvio,
pescador dos galeões (avô paterno) e de um serralheiro do Arsenal (avô
materno).
Reformado da marinha mercante e
tendo sido serralheiro de precisão de moldes para plástico e de cunhos e
cortantes, Abílio assegura, com ironia: “O Salazar ensinou-me a ser comunista!”
Acerca
do seu percurso profissional afirma: “Fui um saltimbanco, sempre entendi que
trabalhar numa mesma casa era atrofiante.” Tendo viajado por todo o Mundo
várias vezes, recorda: “América quase toda, uma parte do Brasil, uma parte de
África, Ásia…Japão, a Itália toda e a Turquia. Só não fui à União Soviética!”
Abílio Duarte começou a escrever
para fados, a partir de um episódio estimulante: “Em 1959, quando fui trabalhar
para a Marinha Grande (estava ligado ao fado e trabalhava) foi quando acabei a
tropa…queria casar e fui para a Marinha Grande…comecei a sentir a saudade do
Fado, foi quando fiz a homenagem ao Alfredo Marceneiro. Tive a felicidade de
cantar versos, em dueto, com o Alfredo Marceneiro na casa da Maria Teresa de
Noronha, em Cascais. Era casado com a Julieta Reis
.
Comecei a cantar, a primeira sextilha, que é dum fado do Marceneiro - “Natal do
Prisioneiro” - quando canto a segunda, manda-me calar, improvisa o elogio que
lhe estava a fazer, cantamos a seguir os dois. Foi dos momentos mais lindos,
foi ter a felicidade de fazer um improviso com o Alfredo Marceneiro! A partir
daí comecei a fazer algumas quadras (o marítimo é um homem sozinho).”
Das leituras dos diversos
escritores que o enriqueceram, salienta António Aleixo, Carlos Conde, Ary dos
Santos, Cesário Verde, Álvaro de Campos. “Fui apanhando bocadinhos aqui e
acolá. O jornal “A Bola”, quando era trissemanário, à quinta-feira trazia um
manancial de formação, feito por rapaziada de esquerda. O “Diário Popular”, ao
sábado trazia cultura!...”
Escutámo-lo, longamente, desfiando
um rosário de sombras. Com pudor, recolhemos os dados primordiais para esboçar
o retrato. E quisemos saber como foi o tempo de ser criança: “A minha
infância…pronto! Eu estava perto dos oito anos quando morreu a minha mãe. O meu
pai tirou-me à minha mãe e fiquei a viver com a minha avó aqui na Baixa.
Porrada foi mato e cara esfregada no colchão.
Estava a comer sopa de massa
, o
meu pai chamou-me: “Olha, a tua mãe morreu, a tua avó vai-te levar, quando lá
chegares abraça a tua mãe.”
As memórias doem, têm um sabor
amargo: “Juventude, não tive! Não tinha relógio, cheguei sempre cedo ao
trabalho. Levava a lancheira para o trabalho, dormia num vão de escada, na
Calçada Salvador Correia de Sá, no nº 19, com a minha avó materna…”
(...)
Abílio considera que “A vida nas
oficinas, com os colegas serralheiros, que é a vanguarda da classe operária,
foi essa vivência que me ensinou. Eu não me abstraía, eu agarrava tudo. E a
vida do Bairro Alto também me ensinou. Casei com vinte e dois anos e ensinei a
mulher, que tinha vinte e quatro, a pôr uma fralda, pela experiência que tive
no Bairro Alto.”
“A vida obrigou-me a ir para a
luta”, confirma.
Abílio chegou aos setenta anos
com a dignidade e candura dos sábios.
Associativista, ex-presidente da
mesa da Assembleia Geral do Grupo Excursionista “Vai Tú”, da Bica e
participativo, nas noites de fado das colectividades e da “Tasca do Careca”,
continua a vender peixe ao lado da sua terceira mulher, no mercado de Campo de
Ourique.
O sorriso, talvez o tenha trazido
de longe, das mil andanças, e como os pescadores de pérolas, deslindando
tesouros no fundo do oceano, assim desanuvia rosto e gestos…
Quando canta, cerra os olhos e a
voz, rouca, desenha pegadas sofridas, ou celebra patuscadas bem regadas.
O quotidiano de um mareante tem
altos e baixos, como as ondas do Mar. A vida de um poeta não é menos contrastante…
Os seus versos essenciais e
profundos alojam o ferrete de diversas etapas da caminhada, adversas. E um ou
outro instante de júbilo.
Por vontade de Mestre Abílio
passam a ser património de todos. A sua fruição em livro é a melhor homenagem
que podemos fazer a este homem - acompanhando-o nos passos que a existência lhe
impôs.
Libertemo-lo do peso de um
destino áspero, pois o afecto pode ser lenitivo, atiçando sílabas de
contentamento.
Bem hajas, Poeta, pelo teu
exemplo partilhado, por esta vontade de soltar a alma, que te fez transcender
as amarras que apertam o barco ao cais, o marinheiro ao fadário e o sonho à ousadia
de voar.
Luís Filipe Maçarico