"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

terça-feira, junho 29, 2010

ÁGUAS DO SUL: DISTINÇÃO DE LEITORES NO BRASIL


Recebi uma mensagem, onde este selo anuncia a candidatura, para o meu blogue participar num Concurso, com votação dos leitores, para a qual o "Águas do Sul" foi indigitado para TOP BLOG 2010.
Só que "Oásis dos Sonhos" é português e vive em Portugal e o Regulamento deste Concurso é bastante claro:
Somente podem inscrever-se para participar do TOPBLOG, o(s) autor (es) de Blogs que tenha(m) e comprove(m) domicílio em qualquer cidade do território Brasileiro.

Mais informações clicando sobre este endereço:
http://www.topblog.com.br/2010/

Ainda assim fico feliz e agradeço a quem indicou o meu blog, mas ainda assim para mim fundamental é continuar como até aqui: partilhando, criticando, informando.

Obrigado a todos os que me lêem em Portugal, no Brasil e em outras paragens.

sexta-feira, junho 18, 2010

E CHEGARÁ O DIA DAS SURPRESAS


"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver." (José Saramago, início do discurso proferido, na cerimónia do prémio Nobel)

"E que de vez em quando me ponham uma flor debaixo da pedra para eu saber que não fui esquecido"
José Saramago

O Homem que conheci nos anos 70, num 3º andar da Madragoa, graças à escritora Isabel da Nóbrega, e me cumprimentou, lembrando-se de mim, serenamente, no ano em que a Feira do Livro se realizou na Praça do Comércio, partiu com serenidade, disseram na RTP1.

Fica uma obra marcante que resgata os simples e os oprimidos, que é a magistral memória ficcionada de tempos opressores e dos infindáveis sofrimentos dos que nada possuem a não ser sonhos e revoltas. Como escreveu o fotógrafo Mário Sousa, "era um homem autodidacta, não estudou na universidade, mas, a universidade estudou-o a ele."

Hoje desfolhei novamente o belo livrinho "As Pequenas Memórias", que recomendo e voltei a escutar Manuel Freire, cantando esta arrepiante premonição (numa altura em que Durão Barroso adverte para a hipótese de haver revoltas populares e golpes de Estado na Grécia, Espanha e Portugal):

OUVINDO BEETHOVEN

Venham leis e homens de balanças,
mandamentos d'aquém e d'além mundo.
Venham ordens, decretos e vinganças,
desça em nós o juízo até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade
a luz vermelha brilhe inquisidora,
risquem no chão os dentes da vaidade
e mandem que os lavemos a vassoura.

A quantas mãos existam peçam dedos
para sujar nas fichas dos arquivos.
Não respeitem mistérios nem segredos
que é natural os homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
relógios a marcar a hora exacta.
Não aceitem nem queiram outra arte
que a prosa de registo, o verso acta.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
cercados de bastões e fortalezas,
hão-de ruir em estrondo os altos muros
e chegará o dia das surpresas.

José Saramago

Fotografia recolhida na Net. NOTA: se clicarem em cima do título do poema, escutarão estes versos cantados por Manuel Freire.

domingo, junho 13, 2010

Pormenores do Património Discreto na Freguesia de Tôr (Loulé)



























Este 10 de Junho estive numa aldeia do Barrocal, que é sede de uma freguesia recente - Tôr- a convite da antropóloga e socióloga Mestre Sónia Guerreiro Tomé, directora de serviços da Associação Social e Cultural da Tôr e directora técnica do respectivo Centro Comunitário. O património discreto e uma palestra em torno dessa realidade, surpreendeu as pessoas presentes na sessão que olhavam incrédulas para aldrabas, batentes, cataventos, cantarias, um signo saimão, e outros testemunhos da sua terra, que afinal desconheciam, pois como concluíram, prometendo outra atenção sobre os objectos e elementos desse espólio identitário, ver e olhar são formas diferentes de captar a realidade.

Esta investigadora desenvolveu pesquisa na área da Sociologia e da Antropologia Rural, tendo tido outras experiências nas áreas do desenvolvimento local e da acção social, sendo a sua tese de mestrado, orientada pelo Prof. Dr. Pedro Prista, alvo de elogiosos comentários da Professora Fabienne Wateau, durante a dissertação que decorreu no ISCTE, em 2009. A tese chama-se "A Água Dá, A Água Tira: Gestão Social dos Extremos da Água (Seca e Torrencialidade) no Barrocal Algarvio". A tese está online e francamente recomendo a sua leitura.
Para desfrutarem de um estudo com qualidade, cliquem então em: http://repositorio-iul.iscte.pt/browse?type=author&value=Tom%C3%A9%2C+S%C3%B3nia+Guerreiro

Algumas das imagens aqui divulgadas foram primeiro partilhadas no Facebook, tendo havido comentários muito estimulantes, como foi o caso da companheira Maria Elvira Carvalho, que afirmou: "Respira-se paz nestas paragens", de Pedro Miguel Gomes Gonçalves, que opinou: "Uma freguesia bastante bonita".
Retenho contudo, o comentário intenso de Susana Gama, mestranda dum curso sobre o património, na Universidade do Algarve:
"Eu, como algarvia, tenho a agradecer-lhe estas magníficas imagens que ilustram o imenso património rural que o Algarve tem e que tão desapercebido passa da maioria dos turistas, mesmo daqueles que não procuram só sol e praia e que bem falta faziam à economia local destas freguesias."
Obrigado a todos por essas opiniões.
Todavia, a Tôr, através das imagens que nela recolhi, fica agora disponível para outros leitores, que espero, também venham comentar este post.

Antes que me esqueça, deixo uma informação gastronómica (pois nem só de estudos vive o homem): Na Estação de comboios Loulé, existe um cantinho chamado "Boa Viagem" que serve de bar para o viajante que precisa de se abastecer de comes e bebes. Pois eles têm só as melhores bifanas que você já provou, asseguro sem dúvida. Experimentem.

Luís Filipe Maçarico (texto e fotografias)

sexta-feira, junho 04, 2010

UM POMBO COM SORTE


















Continua a ser um bichinho indefeso, mas sôfrego de vida, a caminho das seis semanas ao meu lado...
Tenho falado muito dele na minha página do Facebook, porém, apercebi-me que no "Águas do Sul"faltava mais informação sobre o Kiko.
O animal que me caiu pela chaminé num dia de trabalho e que atabalhoadamente coloquei com pão e água na varanda, indo trabalhar com má consciência, pensando que era mais um que ia morrer, e ainda por cima, naquele dia com temperatura de esturricar humanos e bichos...está em boa forma, já socializou com outros pombos, quiçá parentes, e, quando eu pensava que tinha chegado a hora de dizer adeus e quase lacrimejava por causa da separação, eis que ele regressa , vai e volta, qual filho pródigo para dormitar uma sesta no meu braço.
Talvez tenha ralhado comigo quando me bicou nos dedos (ou queria que lhe desse mais broa desfeita na mão?) Percebo pouco de pássaros...estou a fazer uma formação intensiva, tentando captar os sinais que este novo amigo emite.
E enquanto o país protesta contra toda a sorte de injustiças e desdenha de certas medidas de pseudo combate à crise, depois do dia nacional das colectividades e da criança, acontecimentos que não assinalei, cansado da minha vida de cansaços, eis que o Kiko vem dormir a casa, procura-me para vomitar "karias" que comeu na rua e bater sorna, subir para o meu ombro, falar comigo, envolver-me...
Ontem quando saí para ir ao café e à mercearia, fui com o coração nas mãos. Teria perdido o amigo, agora a vadiar, naquela liberdade que tanto desejei para ele...?
Ainda esta manhã antes de eu sair, com o bico bateu na janela da varanda, para o deixar entrar... então o kiko subiu para o meu ombro, piando, com enorme desfaçatez...
A varanda, a casa é o seu ninho e o Luís o pai-humano maternal, que há seis semanas tinha imensos preconceitos contra esses ratos com asas mais as doenças que podem provocar...
Como se costumava dizer em linguagem popular das mulheres de Alcântara, neste bairro onde cresci (no parapeito de uma janela, sonhando voos para lá daquele mar quase à porta, menino pombo de Lisboa), paguei com a língua...esta língua meiga, que também sei usar, para falar de uma amizade, tão natural quanto estranha, tão delicada como inquieta, tão eufórica, que chega a ser melancólica...
Antigamente, desciam Pais Natais e Meninos Jesus pela chaminé, agora são pombos, orfãos, frágeis, assustadiços, caídos do ninho, numa maré de fuligem e susto. Sem saber o que os espera depois da queda...
Este teve a sorte de conhecer um pai chamado Luís.
Texto e fotos de Luís Filipe Maçarico