Foi com este texto que no passado dia 17, no Bar Al-Safir, apresentei o livro "Cidades da Água":
"Com a mestria de um alaúde de palavras intensas, Miguel Rego teceu o seu texto, juntando-lhe o tempero de um percurso mágico, em busca da luz, firmado pelo traço lírico e a alquimia criativa de Manuel Passinhas. O encontro destes dois artistas originou “Cidades da Água”, um livro que percorre e evoca urbes, abrigos, recantos, metrópoles, medinas, criados com a sabedoria do Mediterrâneo, construídos à escala humana e ligados à Natureza.
Submersas, num tempo onde o Não - Lugar impera, substituindo a pertença, as “Cidades da Água” irrompem na escrita densa deste arquitecto de sonhos, arqueólogo da inquietude, príncipe da metáfora.
Sedento de sítios para o afecto, Miguel Rego insiste em perseguir a cintilação das sílabas, para semear a esperança.
Perto de Cesário Verde e Raul de Carvalho, participamos na evidência labiríntica do território de sombras e sofrimento que é a cidade.
Em “Sentimento de um Ocidental”, o mestre de Fernando Pessoa, “camponês preso em liberdade pela cidade”1, disse que:
“A Dor humana busca os amplos horizontes
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!”
E naquele que é talvez o seu poema mais emblemático, o vate do Alvito clamou pela serenidade perdida:
“Vem dos prédios sem almas e sem luzes
(…)
Leva-me para longe
Deste bíblico espaço
Desta confusão abúlica dos mitos”2
Em “Cidades da Água”, multidões sonâmbulas automatizaram passos, gestos, quotidianos de frustração, que patenteiam a incapacidade de respirar o futuro do futuro, “a cegueira das mãos para incendiar o que resta/ da casa fria/ da rua suja/ das torres ocas/ das vidraças incandescentes.”
De Miguel Rego se poderia dizer, como Álvaro de Campos, em “Lisbon Revisited”:
“Vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.”
No sangue da sua lira há pegadas libertárias de Walt Whitman, a arte das odes de Neruda.
A saga do criador vital, mas discreto, o homem invisível que ergue cidades e entorna sonhos, palpita nestas páginas, com vigor e ternura. É a Humanidade, em caminhada épica de séculos, enxertando árvores milenares, fechando abobadilhas, reinventando “o gosto da maresia a invadir a planície.”
As mais de 500 estrofes estão pontuadas por muitas expressões, das quais seleccionei estas cinco:
“O incandescente das ruas recortadas a compasso e escala”;
“Um eco do nome largado às mãos do vento”;
“Uma árvore onde corre a alegria de quem à terra/deu o saber do enxerto”;
“Na branca vertigem de muitas viagens”;
“O cheiro prenhe de flor de laranjeiras”.
As quase duas centenas de verbos, utilizados nos dezanove poemas de “Cidades da Água”, confirmam o talento do poeta no exercício linguístico. Efectivamente, Ser, Construir, Abrir-se, Dizer, Trazer, Adormecer, Emergir, Oferecer e Olhar, são alguns dos versos mais empregues, tal como Incendiar, Arrastar, Engolir, Invadir, Esmagar, Inundar e Rasgar, acentuando - no jogo dos opostos - a dicotomia luz/sombra.
Encontramos uma grande riqueza vocabular, ligada às artes ancestrais da construção tradicional do sul, como é o caso das palavras de origem árabe alvanel e azimute, só para citar dois exemplos.
A palavra “mil” sublinha ao longo das páginas a força da aventura colectiva. Vejamos quatro de várias frases que integram este vocábulo:
“O chão de mil peregrinos adormecidos”;
“A sombra de mil séculos de homens”;
“As mãos de mil anos de memórias”.
“O peito ofegante e cansado de mil marinheiros”
Ao lermos esta poesia, permanece em nós a elegância de inúmeros termos escolhidos, como abobadilha, âmbula, cinzel, dédalo, glauco, lambaz, lintel, mísula, viatória.
Mas esta poesia não é nem contemplativa nem decorativa.
Miguel Rego utiliza neste trabalho frases que nos falam de resistência e gritam contra “os risos dos velhos ridículos donos do tempo”, “a impotência da força ofuscada dos homens”, “os pés estridentes e escarlates dos senhores impenetráveis” que cospem “a sonolência”…
A realização integral do indivíduo, idealizada pelo espírito humanista de Bento Jesus Caraça ajusta-se à procura incessante de Miguel Rego.
Miguel corporiza o melhor da Renascença, pois sendo homem habituado a desventrar as entranhas da terra para parir descobertas, alarga a outros mesteres o seu desempenho.
Animador de tertúlias e festas, fazedor de revistas e livros, coordenador de investigações, centros documentais e exposições, entrelaça experiências, saberes, ofícios e emoções. E canta, comparte, confraterniza, voa!
Na senda de Marc Augé, Miguel Rego deambula, visionário, por esses lugares identitários, relacionais e históricos, como se fosse um repórter do passado no presente.
O equilíbrio cósmico vem contudo da Natureza e por isso, não será vão o apelo que o poeta faz no 13º poema:
“Vem rio d’antanho
Derruba as portas da cidade que te rouba cada canto ao teu espraiar vigoroso
E autêntico;
Arruína cada um daqueles que te invade o leito
(…)
Engole, na tua mais brilhante revolta,
(…) Os palácios de brocados de veludo tules e tafetá
Ornados a tangos e valsas em noites de máscaras e bailes de caridade.”
Este livro surpreende pela revelação de um autor de primeiríssima água, arrepia pela qualidade da sua lírica, pelo apuro do verso, pela interioridade, pela escolha de termos pouco usados nesta forma de expressão literária, que soam muito bem, quanto à lógica e contextura da temática abordada.
Mas “Cidades da Água” é também pretexto para o companheirismo mais luminoso se manifestar, pois um outro ser igualmente esplêndido faz a recriação da poesia de Miguel Rego. Presença encantatória e envolvente, Manuel Passinhas, com uma requintada paleta de tonalidades ocres idealiza vagas de castanhos, branco, azul, um pouco de vermelho e um verde ténue, redesenhando o burgo - fortaleza, ilha, babel, barco, quimera, ora possante, ora esbatido. As cidades oníricas da Arte de Passinhas evocam a Veneza de Turner, representam a exaltação do que há de melhor na pincelada do pintor: a busca da Harmonia, num tempo de desenlaces.
Miguel:
Manuel:
Estas “Cidades da Água” são a vossa marca, o gérmen, o abraço do tamanho do Mundo, a que não ficamos indiferentes.
Também nesta trajectória, tão feliz, vocês provaram que é possível ser grande e livre!
Em verdade vos digo, que a este Lugar da Poesia voltaremos, para celebrar o Encontro e a Existência, entre Amigos, alumiados pela Festa, pois como disse Sebastião da Gama, “Pelo Sonho é que Vamos”, e António Gedeão corroborou, “O sonho é uma constante da Vida”. Conquistado pelo mistério bem urdido, que é este livro fascinante acrescento: Para homens sábios e sensíveis, como vocês, o sonho será isso tudo e muito mais!
Bem Hajam! "
Escrito em Lisboa,3 a 14 de Maio de 2007
LUÍS FILIPE MAÇARICO* Peço desculpa pela fraca qualidade das fotografias, mas não foi possível, na ocasião, fotografar os autores do livro, por estar a fazer a sua apresentação. Estas duas imagens foram realizadas depois, quando lhes pedi um autógrafo, e acusam algum nervosismo...