Deolinda Vaz Afonso fez 92 anos em Fevereiro. “Criada e nascida aqui. Tenho ido agora a Lisboa desde que os meus filhos lá andam.”
Natural de Moreanes, onde vive, é, como outros idosos, um manancial de recordações. Mas aparte este ou aquele curioso, quem ouve os nossos velhos? Quem quer saber do destino deles?
Vemo-los nos Centros de Dia, nos Centros de Saúde, à soleira da porta ou nos bancos das praças partilhando suspiros e memórias.
Dona Deolinda casou com 25 anos, o marido era de Moreanes. Chamava-se Francisco Leandro Baptista e tinha 27 anos.
“Ele, sabe...tinha 10 anos quando os pais morreram...diferença de 20 dias. A mãe tinha tido uma criança pequenina, ele tinha mais dois irmãos e uma irmã. E ficou a pequenina, quando a mãe morreu, com uma tia deles que tomou a posse. Eles foram para casa da avó da parte da mãe. E depois, nessa altura morreu um tio que tinha 3 filhos e juntaram-se todos na casa da avó. A avó era uma mulher muito forte. Com uma cuba à cabeça muito pesada ela ia ao poço. Punha-se conversando e com a cuba à cabeça...
Todas as pessoas de idade avançada, como a nossa interlocutora, ficam com outro brilho no olhar, quando reencontram o tempo em que foram novas e felizes, através da boa companhia das lembranças luminosas.
Deolinda solta uma risada:
“Ê cheguei a levantar-me da cama quando o mê pai estava na contramina. E ele ia-me a levar aos bailes à luz do gasómetro. Ê gostava muito de bailes. O mê marido não gostava, mas bailava eu. Nesse tempo lá aparecia uma grafonola.”
Deolinda recorda “as comadres e os compadres”...
“Íamos para o campo, fazíamos lá de comer. Mesmo que eles não estivessem, lá fazíamos.”
Recordam-se versos que se improvisavam, com o mote:
“Um raminho, dois raminhos”
Através desse versejar um rapaz declarava-se e na resposta a rapariga, dava a entender se aceitava ou não aquele homem como namorado.
Vizinho de ti Deolinda, José Rodrigues lembra-se de um dia um homem apaixonado ter-se declarado desta maneira:
“Um copinho, dois copinhos
três copinhos de aguardente
um beijo duma alentejana
faz andar um homem quente!”
Tendo assistido à recitação, logo o pai da rapariga entrou peremptório na desgarrada:
“Um copinho, dois copinhos
um copinho de licor
levas um murro nos cornos
passa-te logo o calor!”
Deolinda Vaz Afonso evoca um baile em 1934, “com flaita”. O tocador “deixou a flaita e ele não se cansava de dançar.”
Os factos e as épocas revisitam-na...
“Depois o mê marido, como só quem o auxiliava era a avó, admitiram-no na mina, era aguadeiro (aos dez anos). Depois puseram-no onde o pai trabalhava, na forja.”
É da sua memória que saiem outras informações:
“Ê cheguei a ir à máquina de enxofre à noite levar-lhe o comer. Fui muitas noites, íamos a levar o jantar ao sr. Guilherme chefe da Achada” (encarregado)
À residência dos ingleses encarregados da mina chamavam “a ilha”...
Ê saí de casa do Inglês...fui pra lá ainda não tinha feito 20 anos...”
“Esses ainda tinham casas. Os outros trabalhadores, um quarto e fazia-se tudo. Tantos filhos que tinham. Viviam num quarto, era cozinha, quarto e tudo!”
Agoirentos, os ingleses- para valorizarem o seu desempenho- diziam: “Quando vocês virem a mina na mão dos portugueses acaba a mina.”
O rosto muda de feição quando assomam ao espírito imagens tristes do passado...
“Morreu com 80 anos. Não sei que tempo esteve reformado, não me lembro já. A máquina...desmontou a máquina...ao desmontá-la, partiu-lhe a cara toda...”
As memórias são agora mais sombrias:
“O mê pai também teve um desastre na mina. Foi uma pedra de minério, estavam a tentar arrancar o minério de uma pedra ela caiu e partiu-lhe as costelas. Mandaram-no para casa e não o ligaram. Não chegou a uma semana em casa, passando o natal, no outro dia era 26 e morreu.
Fez-se o funeral e não deram uma pensãozinha à minha mãe. A minha irmã foi para Santana a servir. E o sargento como gostava dela, mexeram-se e então foram lá dois médicos desenterrar o meu pai e viram que ele tinha as costelas todas partidas e então tratou-se de dar alguma coisinha à minha mãe, já tinha um mês de estar sepultado.
Ainda conheci médicos que vinham a cavalo nas bestas e vinham a casa das pessoas. Pouca gente ia ao médico.”
Fotografo esta senhora e ela despede-se com um sorriso. Fico com as suas palavras, histórias de uma vida enredada noutras existências, que o sofrimento visitou.
Deolinda é testemunha de um tempo injusto, onde os trabalhadores não podiam viver com dignidade e morriam como se fossem animais de carga.
Há quem diga nas colunas dos jornais e noutras cátedras do desprezo pelo mundo laboral, que não foi bem assim, em nome do rigor científico, etc.
Em nome do Povo, há que guardar esta oralidade, tesouro decente dum vigor que resiste à manipulação mexeruca da cagança televisiva.
Deolinda é nome de papoila que no seu campo de sempre assiste à passagem dos dias e dos seres, até que um dia o sol da alegria a chame, para nunca mais ter a sombra triste por companhia.
Lisboa, 8 de Agosto de 2006
LUÍS FILIPE MAÇARICO: texto e fotografia