“Sou livre!
Pássaro que voa sem passado nem futuro
Não tenho culpa medo preço.”
Com estas palavras simples, Maria José Lascas Fernandes assume um projecto de vida, afirmando o esplendor do Ser. Não é fácil ousar tocar a Beleza, transcendendo o quotidiano, respirando a serena inquietude, desafiando o voo: A “Plenitude”.
Já uma vez escrevi, creio até que no contexto de um estudo académico, sobre a obra de Artur Bual à luz da psicanálise, que os artistas ao exporem-se, na tela como nos livros, desejam ser amados, embora bastas vezes a sua postura de incompreendidos ou inadaptados, os distancie do comum dos mortais…
Maria José Lascas derrama na sua nova partilha, o lirismo de trovadores ancestrais, como Bernardim Ribeiro, o melancólico ardor de Florbela, a brandura rústica de Caeiro e Cesário, a materna ternura de Maria Rosa Colaço, a cariciosa ironia de Raul de Carvalho, como a certeira substância dos haikus de alguma poesia de Eugénio de Andrade e Albano Martins.
Não se pense, porém, que esta apreciação é excessiva! Sei do que falo!
E, aparte a amizade que nutro por Maria José Lascas, posso assegurar que estamos efectivamente na presença de um livro muito belo, de significado intenso, que me tem acompanhado nas tardes de sol deste Outono em Lisboa.
Habituado a ler centenas de versos, em publicações avulsas, jogos florais e na Internet, onde se ostenta uma incipiente e decepcionante escrita sem alma – pois hoje em dia qualquer principiante tem acesso à publicação dos mais assolapados arroubos umbiguistas, desde que pague – digo-vos que este livro, felizmente, nada tem a ver com o avassalador rame-rame promovido em periódicos, tertúlias e certames.
“Plenitude” é um grito, um querer, o espanto por poder saborear o melhor que alguém pode partilhar de si, - a procura da harmonia. A plena entrega à vida, depois do sonho. “Plenitude” é um olhar nostálgico, para citar o autor de “Os Sulcos da Sede”, sobre “qualquer coisa em que ninguém sequer reparou, que deixou de ser para se tornar melodia”.
Tal como Albano Martins e Eugénio de Andrade, Maria José Lascas trabalha e vive no Norte, mas é mais a Sul que a sua essência demanda as raízes.
A Poesia e essa sede de sul aproximaram-nos…
Um dia, ela atravessou a Gardunha para conhecer o Vagabundo e Alpedrinha, a terra mágica, onde semeámos poemas e despenteámos luas de sono, mergulhando literalmente num tanque de água fresca, em pleno Agosto.
Pelo caminho romano, demandando emoções, subimos aos templos do vento, compartindo o doce segredo de uma existência insubmissa, espreitada pelas trevas.
“Aqui morre-se de velhice e solidão.”
Compartilhei o tempo e o lugar de alguns dos poemas deste livro: Arribas do Douro, Safira, Pomarão, Moreanes, os rios, o chão sedento, rochedos, gaivotas e cegonhas. O Alentejo do Portaleiro. As memórias do pai. Uma lágrima de saudade. A mansidão dos animais, o rasto dos antepassados, os manjares, manhãs de uma luminosidade e odores únicos. Fortíssimos.O pão e o vinho de séculos de labuta, transmitidos pelo sangue numa sabedoria de crepúsculos e alvoradas.
É do sul esta necessidade de plantar sílabas e jasmins para combater a ausência, a solitude, tentando colorir e perfumar o álacre branco abrasamento da cal. Abelha, mel, flor, sol, sombra de limoeiro, são algumas das chaves para encontrar a “Plenitude”.
A menina do Monte regressa a Montemaior, com outro livro no regaço.“Mas nunca se regressa por inteiro ao lugar donde partimos”, assegura o autor de “O Espaço Partilhado”. Talvez por isso, desta vez, os poemas de Maria José Lascas sejam mais densos e cintilantes, porque oriundos de um parto de errâncias, desatinos e sufocos, consequência de quem se atreve a querer mais da vida.
Chamo a atenção para a magnífica prosa poética “A Amoreira”. A certa altura, a autora escreve “Porque o vazio me acompanha…”
Maria José engendrou as suas asas de Ícaro e regenerou-se no seu anseio de nos tocar. Mergulhou na luz. Nas arribas das águias. No Cais da Música. Na “Plenitude”, lugar do silêncio que é o lugar do encontro consigo e, citando a própria, com “quem morreu, quem amei”
Desfruta-se a grandeza do ser humano, na transmutação dos dias e a serenidade, nestas páginas. Termino, com breves estrofes, extraídas do livro, desejando que a leitura destes poemas crie em todos nós a vontade de sermos melhores:
“Amas no outro o melhor de ti
(…)
Sei que vivo!
Tenho uma gaivota poisada no olhar.
(…)
Todas as palavras são possíveis!”
Luís Filipe Maçarico
(Fotografias de LFM: Maria José Lascas(1 e 5), com São Baleizão e Rosa Dias(2 e 4), Ana Fonseca a desfolhar o livro(3) e a assistência (6 e 7).
Na sessão estiveram ainda presentes, entre muitos outros, o Presidente da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, prof. dr. Carlos Pinto de Sá, a pintora Isabel Aldinhas, o presidente da direcção da "Alma Alentejana", sr. Joaquim Avó, os doutores Maria Amélia e Manuel Sobral Bastos, dirigentes da "Aldraba, Associação do Espaço e Património Popular, e o prof. dr. José Orta, director da revista "Arquivo de Beja". Seguiu-se um convívio muito estimulante, ao qual não faltaram as boas iguarias e os magníficos vinhos do Alentejo)