José Soares Santa merece esta abordagem, pelo que significou e continua a significar, enquanto exemplo de indivíduo tenaz mas com princípios, que idealizou e construiu uma carreira em contexto adverso. Falar de Santa “Camarão”, cem anos depois do seu nascimento, é , parece-me, uma necessidade para todos os que reflectem sobre o desenvolvimento civilizacional e defendem um futuro, onde valores como a fraternidade e o espírito desportivo proporcionem saudáveis e harmoniosas cumplicidades, sociabilidades com respiração à escala humana, das quais resultem cidadãos empenhados e criativos.
Falar de Santa “Camarão” hoje é dar a conhecer aos jovens de agora o percurso de um atleta que, num tempo de poucos recursos conquistou um lugar cimeiro no boxe, de prestígio e dignidade, respeitando os adversários e contribuíndo para reforçar a auto-estima dos portugueses emigrados na América, enfrentando os campeões de então, com melhor preparação técnica, muitos dos quais venceu no ringue.
VIDA E CARREIRA DE UM PORTUGUÊS LENDÁRIO
José Soares Santa, “Camarão” por alcunha de família, é um filho dilecto de Ovar: consagrado na toponímia, no museu local, no espólio fotográfico e de recortes guardados na Biblioteca Municipal, na Imprensa e na memória dos vareiros.
Nascido no dia de Natal de 1902, na mesma casa morreu em 5 de Abril de 1968, após uma existência aventurosa, repartida por Lisboa, Brasil, Berlim e Estados Unidos da América...
Foram sessenta e cinco anos de uma intensa existência que o trouxe à capital para aprender o árduo trabalho de fragateiro, ofício de seu pai e de um tio, ou seja estivador de fragatas, barcos do Tejo.
Nos anos 10, com algum desconforto por ser grande- em homem atingirá 2 metros e 2 centímetros de altura e terá 49,5 de pé- o adolescente sofreu com esse gigantismo, que o tornou aos olhos das pessoas com quem tinha de cruzar-se em terra, durante o desempenho de recados, uma espécie de atracção de circo, um fenómeno motivador da chacota de um povo, que ainda agora paralisa estradas para ver os despojos dos acidentes...
Uma ida ao Coliseu encaminhou-o para a escolha: se o público aplaudia, respeitava e delirava com indivíduos grandes e grotescos em exibição, então queria ser como eles.
Após uma breve incursão na luta, dedicou-se ao boxe. Rapidamente, em meados dos anos 20 tornou-se campeão nacional de todas as categorias da modalidade, título que manteve consecutivamente durante sete anos.
Partiu para o Brasil em 1926, mas esta primeira experiência internacional foi mais benéfica para empresários oportunistas que se serviram da sua humildade e lealdade para o explorar, tentando auferir chorudos proventos à sua custa, em detrimento de uma preparação física adequada que lhe proporcionaria outros resultados. Mesmo assim, José Santa não esmoreceu e sozinho visitou jornais, fazendo o seu próprio marketing e tratando ele mesmo de alguns contratos, dispensando intermediários.
Em 1929 atreveu-se a desafiar o campeão europeu, o belga Pierre Charles, que aceitou o combate num Campo Pequeno pejado de adeptos.
Sem conseguir o troféu, mas averbando um dos melhores momentos da sua carreira, José Santa estreou-se na 7ª arte, integrando o elenco da primeira película onde a língua portuguesa foi falada em cinema: “Amor no Ringue”, realizado por Reinhold Schuntzel, cujo protagonista seria campeão do Mundo e ídolo de Hitler: Max Schmeling.
Infelizmente a nossa Cinemateca, para onde escrevi em Janeiro deste ano, propondo um ciclo de boxe no cinema, perdeu uma excelente oportunidade de homenagear e dar a conhecer o nosso pugilista...
Entre Julho de 1930 e o Outono de 34, Santa tornou-se num espantoso símbolo de portugalidade para a Comunidade emigrada na Califórnia, que lhe prestou as mais emocionadas homenagens promovendo em sua honra chás dançantes, banquetes e outros encontros sociais que contaram sempre com a presença do boxeur.
Alvo de poemas exacerbados, casou com Mary Loreto, uma luso americana, em 1932, e além de participar noutro filme, protagonizado por Mirna Loy e Max Baer, campeão americano de boxe (The Prizfighter and the Lady”), enfrentou, após uma sucessão de vitórias estrondosas, o próprio Baer e o colosso Primo Carnera, campeão da Itália, que tinha menos 1 cm de altura e era conhecido como “a montanha que anda”, futuros campeões mundiais.
No regresso a Ovar, onde teve uma curta experiência de proprietário de um café, Santa foi pai de Renaldo, levado pela mãe para os EUA aos 14 anos e que tive o privilégio de entrevistar na cidade vareira.
Apesar de uma vivência discreta, não foi esquecido por alguns jornalistas como João Sarabando e participou com entusiasmo no Carnaval de Ovar ao longo da década de 50.
Aparições em festas de beneficência, visitas regulares de admiradores e o civismo da sua personalidade serena, deixaram uma lembrança carinhosa que os seus contemporâneos sublinharam, quando cheguei a Ovar, incumbido pela Câmara Municipal de Lisboa, de fazer a sua biografia, e comecei a tentar descobrir quem foi Santa “Camarão”...
HERÓI DESPORTIVO
Para compreender os processos da criação de um herói do imaginário popular,- no caso de José Santa, herói desportivo- importa saber que conjuntura propiciou o seu surgimento.
A aprofundada pesquisa bibliográfica, fotográfica, iconográfica, os testemunhos orais de conterrâneos do atleta (grupos e indivíduos, gente anónima e notáveis) e até de familiares, como o filho Renaldo Santa, a vasta troca de impressões e correspondência com o historiador dr. Manuel Bernardo, funcionário da Câmara Municipal de Ovar, permitiram-me arriscar uma hipótese de trabalho acerca das circunstâncias que contribuíram para a organização da carreira, que passo a explanar:
- As origens modestas e o desejo de ascensão para poder proporcionar uma vida desafogada aos pais (efectivamente, o boxe realiza mais facilmente o acesso ao estrelato dos jovens das classes desfavorecidas, para escapar a uma vida problemática. Neste sentido, filmes, biografias e obras como “Corps et Âme. Carnets Ethnographiques d’un Apprenti Boxeur” de Loïc Wacquant, permitem testemunhar esta ideia) ;
- Os triunfos iniciais aparatosos (7º ao 2º round, 3 ao 3º e 2 ao 1º, havendo apenas em 19 combates dois que se disputaram até ao 10º round. 1 até ao 12º e 2 que acabaram, respectivamente, ao 4º e 6º ), todos travados com adversários estrangeiros: 9 franceses, 2 ingleses, 1 belga, 1 espanhol, 1 polaco, 1 húngaro e 1 americano, obtendo 17 vitórias- sendo as primeiras onze e as últimas cinco sucessivas- 1 match nulo e 1 derrota por pontos;
- A admiração do público, ávido de emoções fortes;
- O corpo e a energia de José Santa;
- A afabilidade e correcção desportiva, geradores da simpatia dos espectadores e dos repórteres;
- A imagem que a Imprensa transmitiu;
- O desmoronamento de valores instituídos, que produz fenómenos de transferência, criando no imaginário popular heróis mais próximos das pessoas.
Tendo em conta o conteúdo histórico, ocorre perguntar como foi possível a carreira nessa época?
Face aos dados recolhidos, podemos considerar vários factores, tais como:
- A história de vida humilde de José Soares Santa, cuja identificação encontrou no povo, não obstante a compleição física distinta, o feed-back que o elevou à categoria de herói;
-O físico e a força surpreendentes, num tempo em que se apreciavam nos recintos de feiras e circos exibições de homens descomunais;
-A escassez de adversários portugueses, à altura, e a consequente necessidade de projecção internacional, desafiando os categorizados Pierre Charles, campeão europeu e o campeão de Itália, futuro campeão mundial, Primo Carnera, o que amplificou o fenómeno;
-A crise sócio- económica. É sabido que o aparecimento destes ídolos tem mais impacto quando a sociedade está em crise... Ex: o moçambicano Eusébio apareceu décadas depois, no início da Guerra Colonial, sendo utilizado pelo regime salazarista na sua propaganda em prol do império multirracial;
-A ascensão do boxe nos anos vinte como consequência da diminuição do indivíduo face à Sociedade (Joyce Carol Oates, in “O Boxe”);
-“O entusiasmo dos portugueses com exteriorizações de coragem e destemor, que apreciam os momentos emotivos, onde haja temeridade e impulsivismo, audácia, valentia e actos irreflectidos de heroicidade, é propício à aparição de um super-homem, pois vive imaginosamente das aventuras maravilhosas da idade média e das loucuras quase lendárias dos descobrimentos marítimos” (José Pontes, in “Quási um Século de Desporto Português”);
-O tratamento jornalístico do personagem por parte de articulistas como Rafael Barradas;
-O cuidado posto por Santa Camarão, relativamente à divulgação dos seus feitos e da sua personalidade em autobiografia (“A Vida de José santa contada por ele mesmo”) e na Imprensa da época, visitando as redacções, concedendo entrevistas, alimentando os jornais e revistas com fotos autografadas e notícias referentes às suas performances;
-O envolvimento das associações e dos jornais dos emigrantes luso-americanos;
- O convite do empresário Palhares ao manager Cal para apresentar José Santa no Brasil;
-O conhecimento com o manager Berty’s Perry, que o levou à América;
-A participação no cinema em Berlim e em Hollywood.
Desenrolando-se nos EUA uma parte substancial da carreira de Santa Camarão, que durou nove anos, entre 25 e 34, algumas pistas permitem responder a uma terceira questão: Porque razão foi considerado símbolo da identidade nacional na comunidade luso-americana?
-A eufórica sucessão de 12 vitórias no início da sua estadia na América, assim como o total de 32 combates triunfantes, colocaram-no numa posição de ídolo desportivo, que as qualidades humanas reforçaram e popularizaram;
-A imprensa luso-americana concedeu-lhe um estatuto de semi-deus e novo Viriato, que arrebatou os adeptos;
-Os emigrantes, nos seus jornais e clubes e nas mais variadas iniciativas encararam-no como uma figura de eleição, merecedor de todos os encómios, na medida em que consideraram as vitórias do gigante português sinais de uma identidade guerreira à procura de estímulos para enfrentar vitoriosamente todas as adversidades decorrentes do facto de serem obrigados a viver ausentes da Pátria;
-A veneração do mito actualizou a admiração pelos heróis do passado, transferindo para este virtudes que integram os traços identitários de um imaginário popular;
-A "colagem" dos cônsules à exaltação popular da figura de José Santa reforçou a eficácia do símbolo.
Não terá sido então por acaso que o azeite da marca “Triunfante”, consumido nas residências dos portugueses emigrados na América, ostentasse nas latas de folha onde era comercializado a efígie do pugilista a fazer músculo, sendo rebaptizado de azeite “Santa”.
Não terá sido também por acaso que os músicos ceguinhos, que andavam de rua em rua a cantar fados, vendendo literatura de cordel sobre acontecimentos fatídicos ou situações caricatas em verso, tenham deixado na memória de lisboetas septuagenários a seguinte sextilha:
José Santa “Camarão”
No mundo foi campeão
Por ter uns pés delicados.
Também a Ilda Fernandes
Por ter umas mamas grandes
Foi rainha dos mercados.
*Excertos de uma conferência, apresentada em 11 de Setembro de 2003, na Biblioteca Municipal D. Dinis, Odivelas. A tese de mestrado que entreguei na passada sexta-feira aborda "Os Processos de Construção de um Herói do Imaginário Popular"
(foto: capa da revista "Stadium", anos 20-30)