"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

domingo, dezembro 19, 2004

Um Bairro Estigmatizado visto por dentro

Hoje decidi dar voz àqueles que têm coisas importantes para partilhar. É o caso do Mané, amigo de longa data que há alguns meses, num caderninho de notas, começou a reproduzir memórias de um bairro que já não existe.
Era um abarracado pobre, lá para os lados da actual Alta de Lisboa, e os textos que me foi mostrando, talvez um dia possam ser desfrutados nas páginas de um livro. Considero aliás extraordinário que um rapaz desta Lisboa desaparecida tenha escrito sobre o bairro da Musgueira por dentro...
Enquanto escritor e antropólogo não tenho conhecimento de uma experiência semelhante... E como podem comprovar, esta incursão nas memórias da infância do Mané tem com um colorido, uma riqueza de pormenores e uma ternura, que vale a pena incentivá-lo a escrever esse livro!
O PEQUENO REI*
Que aventura ir às compras, ao domingo! sim Aventura, sim! porque só mais tarde pude perceber que as tendas se arrumavam com espaço sobrado das outras, que já eram habituais no local, sem saber o que nós podíamos comprar. Também analisavámos os apetites acrescidos, com a vontade da vizinhança de fazer de mais um dia, uma festa de convívio. Procurar o que comer seria então uma tarefa mais engraçada, mais para mim do que para os meus pais, como é lógico! Havia toda a espécie de animais vivos, dos quais, alguns mesmo para estimação, coisa que ignorava na altura, só o focinho mais mimado me fazia pensar duas vezes e perguntar a minha mãe. -Mãe, não são para comer, pois não? -Não filho são para guardar a casa!
Nem sequer me dava ao luxo de pensar, como é que uma coisa daquelas conseguia guardar uma casa, muito menos se devia ser guardada e para guardar de quem? Mas já ficava contente de saber que não era para comer. Era divertido andar no meio de todas aquelas tendinhas, construídas com paus, tábuas, plásticos, grades de cerveja, à espera de encontrar bichinhos e esconderijos, iluminando cada vez mais a minha curiosidade.
Certa manhã, depois de procurar no meio dos coelhos, patos e galinhas, dou de caras com um bicho, cheio de cores e em cima da bancada, como um rei, não deixando de ter papo e peneiras para isso, vaidade, força e voz. Como era bonito aquele coroado animal, no qual tive os olhos postos alguns segundos antes de tentar dar uma festinha...foi o meu mal, depois de ter sido picado fui a chorar para ao pé da minha mãe, que logo disse: -Foste logo mexer no Galo! Sabia lá eu o que era um galo muito menos a sua importância no seio de uma capoeira, como aquela feira...
Assim pedi ao meu pai que o levasse para casa para assar, deixando resolvida a situação de embaraço dos meus pais, de tentar agradar-nos.Ficou barato e resolveu-se a escolha do almoço. Mas o mais difícil veio depois. Não parava de perguntar ao meu pai: -O que vais fazer com ele? -Como é que o vais matar? Para esclarecer as dúvidas, ele dizia: -Não o querias, pois vais o ter. Acho que ele dizia isto para não ter que voltar atrás, pois são coisas mais complicadas e com muito significado para as gentes deste bairro. Não sabia aonde meter-me, comecei a ficar com pena do bicho, mas acabei por ver, aprender como se prepara um frango ou galo, pois é da mesma maneira, só varia das coisas que se podem aproveitar.Tive pena de não o conseguir comer no meio disto tudo, mas guardei este segredo comigo, sem dizer aos outros rapazes do bairro, para não ser envergonhado em publico, assim como os meus pais.
Manuel José Graça da Silva
*Título e revisão de texto de LFM

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