"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, dezembro 29, 2014

O ADUFE E AS IDEIAS DE EL CID

José Cid, o mesmo que no tempo do Quarteto 111 interpretava "A Lenda de El Rei D.Sebastião", foi cantar a Idanha a Nova. 
Não se ficou, porém, pelo desempenho da sua actividade, apreciada ao longo de décadas, por um público que o tornou numa referência. 
Todavia e como se incarnasse o saber autorizado de uma Comissão Científica, resolveu, quanto a mim de forma leviana, defender a candidatura do Adufe a património mundial, cristianizando-o.

“De Idanha até Monsanto, do Perdigão a Marvão, quem não tocar bem adufe não deve ser bom cristão”. Um Amigo atento comentou esta bravata, própria de "Opera Buffa" e só possível porque temos uma geração de autarcas com pouca preparação para as questões do Património, aceitando tudo sem reflectir. Diz o meu Amigo, que se formou no seio de uma família de gente culta, interessada pelos costumes e tradições da Beira Baixa: "Enfim, o regresso da “tradição” estado-novista. Como são possíveis estas novas “materialidades” pseudo-populares e neo- patrimoniais? Na guerra contra a dita "desertificação" não, não vale tudo!"

Como não dependo de ninguém, em termos das minhas opiniões, achei que devia intervir e contribuir para esclarecer, quem temporariamente ficou com a mente embaciada, pois infelizmente as questões do património no nosso país, andam muito confusas, para não dizer maltratadas. Então, deixei esta opinião no Facebook da autarquia, que embandeirou em arco com a "brilhante" ideia do cantor...

Acaso quem dirige o Município de Idanha-a-Nova tem consciência das origens do adufe? Acaso o executivo e a assembleia municipal têm a noção que um adufe não pode pertencer a esta ou àquela religião, porque é um marco milenar do encontro de culturas e civilizações?Como antropólogo e sem qualquer sinal de arrogância de quem sabe tudo, pronuncio-me acerca deste assunto desta forma: reconheço que Idanha tem um trabalho magnífico em termos do Centro Cultural raiano, da sua mostra sobre o mundo rural, mas considero deplorável que um cantor, por muito mérito que tenha enquanto tal, influencie - ainda por cima no sentido de patrimonializar um objecto comunitário, cultural, de tão grande valor - as mentalidades, encerrando-as num beco sem saída. O adufe só poderá ser património da humanidade, com o seu irmão duf que se toca do outro lado do mediterrâneo, em comunidades islâmicas. Basta de margens desirmanadas. O Mundo precisa de Paz!!!

Luís Filipe Maçarico (texto e fotos: 1 - Animação num aniversário da "Aldraba", Associação do espaço e Património Popular 2 - Maria da Ressurreição Rolão, senhora que tocou adufe e que chegou a ir com o grupo das Adufeiras de Monsanto à Jugoslávia.)

sábado, dezembro 06, 2014

VISIONARISMO BRILHANTE




A semana passada, como tinha um encontro, marcado para a tarde de sábado, perto da igreja de Santo Condestável, e como a carreira 773 estava muito demorada, apanhei o 727 para o Rato, onde apanharia o 709, rumo ao meu destino. Só que no quadro electrónico, que anuncia o tempo que demora a chegar o autocarro pretendido, não constava o 709. Apenas me restou apanhar um táxi, para chegar a horas…
Isto fez-me lembrar o que me aconteceu uma vez, quando me desloquei à sede dos Amigos de Lisboa, para apresentar um power point, sobre o imaginário popular, em torno de Santo António. À saída (a meio da tarde) recusei boleia (bem parvo fui) e fiquei numa paragem da Av. de Berna, à espera do autocarro que passa nos dias úteis em Alcântara - Terra. Só que ele nunca passou, era sábado…

A capital, através do visionarismo brilhante, dos iluminados dirigentes da Carris, tem agora os bairros mais distantes entre si, graças à supressão de autocarros, que sábado à tarde, domingos e feriados deixam de circular, como o 709 (entre Campo de Ourique e os Restauradores) ou o 56 (entre a Junqueira e as Olaias).
Lisboa ficou ao nível das aldeias longínquas, esquecidas, do país real, desse país profundo, onde as vacas riem, como alguns asseguram ter visto.

Quem, nesta quadra, deseje sair da residência e pretenda ir ver as iluminações de Natal ou assistir a um espectáculo de revista no velho Parque Mayer, mas tenha mobilidade reduzida, por não possuir veículo próprio ou padecer de constrangimentos físicos, deverá prostrar-se frente ao televisor, pois não lhe restam grandes hipóteses de contacto com o mundo…

Os transportes públicos, como esta amostra exemplifica, existem para levar os trabalhadores de casa para o trabalho e vice- versa.
A possibilidade do desfrute da cultura e do lazer, não é admitida na mente dos responsáveis pelos transportes de Lisboa.
Assim, cada um deve ficar numa espécie de prisão domiciliária, nos dias de descanso. 
Se isto é uma democracia, vou ali e já venho…

Luís Filipe Maçarico ( texto e fotografia)

POBREZA MENTAL



 

Sintoma de um Portugal rançoso, em que a estupidez se insinua, no contacto e nos gestos, a todo o momento, somos interpelados, na Rua das Portas de Santo Antão, entre a Casa do Alentejo e o Palácio da Independência.
Indivíduos, por vezes boçais e de aspecto chungoso, tentam aliciar quem passa, para almoçar, neste ou naquele tascório.
Lembram os seus pares, bem menos agressivos e com melhor farpela, no Cais de Cacilhas, recomendando caldeiradas e petiscos imperdíveis.
Fantasmáticos, parecem saídos da defunta Feira Popular, onde também havia gente assim, pegajosa.
Dir-me-ão: É uma forma de terem um emprego…
Calar-me-ia, se estes angariadores de clientela entre os passantes, não efectuassem uma abordagem despropositada, excessiva, inconveniente e até insultuosa, caso a pessoa se recuse a seguir o conselho. E aqui é que “a porca torce o rabo”…
Apetece dizer a esses promotores falhados: Eu tenho olhos, sei que o seu restaurante tem menú à porta e também sei ler. Só que não tenho vontade de comer, e muito menos vou ter, com a sua voz a incomodar-me os tímpanos…
Porque se insiste neste postal horrível, do tempo da ciganita Dora que lia a sina e do comboio do terror, no Luna - Parque, de Entrecampos?
Há lembranças do passado que me causam náusea. Esta é uma delas, pela subserviência dos pregoeiros de um tascório e pelo desespero de varejeira que extravasam. É sinal de uma pobreza mental de onde afinal, não obstante todas as modernidades e evoluções propaladas, nunca saímos…

Luís Filipe Maçarico (texto e fotografia)


domingo, novembro 30, 2014

Não sou Garganeiro!

Seja-me permitido dizer que, ao contrário de pessoas, com vocação para esse efeito, não costumo vincar a minha presença, seja em que evento for -  repasto, exposição ou espectáculo, irrompendo de forma impositiva, como se não houvesse amanhã, para impôr uma das coisas que julgo que faço bem, embora tente ser discreto.

São raras, as minhas aparições, dizendo poesia...
Faço versos, mas já chegou a suceder, que uma amiga, cantora caboverdiana, anunciou que um poeta estava no meio dos espectadores, chamando-me a dizer textos, escritos na sua ilha, S. Vicente.
Na ocasião, apanhado desprevenido, tive de explicar que estava ali para ouvir e aplaudir os artistas de gabarito, que celebravam B. Leza, e não era meu costume trazer versos no saco a tiracolo, que me acompanha, nem sabia nada de cor, para poder evidenciar aquele inusitado, caloroso e bem intencionado anúncio da minha amiga.

Não me revejo, naquela postura empaturrada, de ter de mostrar que sou poeta, monopolizando quem está numa plateia ou a beber um copo, petiscando ou até a pensar na morte da bezerra ... calando pratos, talheres, conversas, para ser escutado.

Quem me quiser conhecer, enquanto autor de livros, tem oportunidades propícias.
Em Alpedrinha.
Em Mértola.
Em Évora.
Em Lisboa.

Todavia, decidi fazer chegar ao Centro de Documentação, da Câmara Municipal de Évora, cidade onde nasci, um álbum de recortes, com os poemas publicados em jornais e revistas, desde os anos 70 e a correspondência com alguns escritores e personalidades da cultura portuguesa, pois considero que é um património que tem de ser fruído pela Comunidade.

Um dia destes convoco-vos, para um desses (raros) momentos em que apresento a minha Poesia.
Como não quero nem estátua, para os pássaros defecarem em cima, nem nome de rua, sinto-me em paz comigo mesmo, fazendo o meu caminho, sem tiques de garganeiro...


garganeiro
gar.ga.nei.ro [ɡɐrɡɐˈnɐjru]
adjetivo
1. regionalismo que come muito, glutão
2. regionalismo figurado sedento por ganhar; ambicioso
3. regionalismo que fala muito e desacertadamente; que tem muita garganta
De garganta × gana+-eiro
 
  garganeiro in Dicionário da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [consult. 2014-11-30 17:37:07]. Disponível na Internet:

Luís Filipe Maçarico (texto e foto - selfie com pombo...)

Assim se viaja em Portugal...


A semana passada fui a Pias. 
Como havia greve na CP, tive de ir no Expresso, da Rodoviária Nacional, para Beja.
A RN foi entregue ao Grupo Barraqueiro, portanto passou a ser privada.
Durante a viagem, o cheiro era nauseabundo. Percebi entretanto, que seria oriundo do WC (não utilizado pelos passageiros), que não estaria higienizado...
Mudei de lugar em Évora.
Aos berros e desde a partida de Lisboa, uma programação televisiva interna, com americanas a babarem-se, lambusadas, grotescas e a provocar vómitos, em provas de trufas e ostras...
Chegado a Beja, pelas 12 e 20, quinze minutos depois parti num autocarro confortável que supostamente iria para Moura. 
No entanto, em Serpa, o motorista anunciou: "Quem vai pra Vale do Vargo, vem comigo. Os outros têm de ir noutra camioneta!"
Conformada, a maioria dos passageiros saiu, uns para a carreira da Amareleja, como eu; outros para Vila Verde de Ficalho...e o motorista que deve ter abrigo em Vale do Vargo, lá foi com o autocarro que dizia que ia para Moura...
A terceira viatura fez percurso até Brinches, deixando-me na estação desactivada, da antiga via ferroviária, em Pias.
Três viagens (entre as 9:30 e as 14:00) para fazer os quilómetros, que num automóvel seriam vencidos em pouco mais que duas horas...
Que país e que povo é este, onde estes absurdos acontecem? 

O regresso fi-lo de comboio, na CP, ainda pública.
Aparte o conforto do Intercidades, vindo de Évora, que apanhei em Casa Branca, lá tive de viajar, entre Beja e aquele entroncamento ferroviário, numa automotora, com janelas de visibilidade muito criticável.
Fotografei. O leitor confirmará o que digo, neste caso.
Assim se viaja em Portugal....

Luís Filipe Maçarico (texto e fotos)

segunda-feira, novembro 24, 2014

Cá se Fazem, Cá se Pagam...


Os governos da Holanda e da Finlândia, que se obstinaram, aquando do pedido de ajuda de Portugal, bolsando insultos ao nosso Povo, do alto do seu pedestal de Triplo A (concedido pelas agências de "Rating"), acusando-nos de sermos gente improdutiva, tombaram, como tordos, pois o Capitalismo tornou-se insaciável e autofágico. 

Neste momento, apenas Alemanha e Luxemburgo gozam desse estatuto...
Ocorre então evocar um acontecimento, recentemente descoberto, através de um comentador da Antena 1, na rubrica "Última Página", que me impressionou pela ingratidão revelada.

Passo a contar, com a ajuda do Diário de Notícias de há 70 anos.

Na edição de 21 de Abril de 1940, aquele matutino informava ter sido recebido "um "bem haja" da Finlândia aos portugueses. Enviada pelo representante em Lisboa desse país nórdico, a nota diplomática agradece a Portugal a ajuda, tanto em víveres como em agasalhos, durante a guerra russo-finlandesa do Inverno de 1940-1941. "Nunca poderá o povo finlandês esquecer a nobreza de tal atitude".

A actual geração de finlandeses que governa o país, mostrou-se insensível aos constrangimentos que atingiram os portugueses, ignorando o que os nossos avós fizeram pelos avós deles.

Por isso, foi com um sorriso, que soube, que uma das agências de "rating" quebrou a unanimidade, apontando a "Fraca evolução da economia e envelhecimento da população finlandesa", cortando a cotação que fazia aquela gente falar do alto de um trono, que julgavam eterno.

Cá se fazem, cá se pagam... 

Luís Filipe Maçarico (texto e fotografia)


segunda-feira, novembro 10, 2014

Um Museu Sitiado pela Ignorância, Estudado por Investigadores Internacionais

"Border-Crossing as a Tourist Experience in the Spanish-Portuguese Border", é um artigo de María Lois and Heriberto Cairo, da Facultad de Ciencias Políticas y Sociología, da Universidad Complutense de Madrid, onde o Museu do Contrabando de Santana de Cambas se apresenta, nas páginas 18-20 do PDF daquele estudo, que aqui partilho.

Também Maria de Fátima Amante, no artigo "Das fronteiras como espaço de construção e contestação identitária às questões da segurança", publicado na revista Etnográfica (2) de 2014, páginas 415-424, se refere ao Museu de Santana de Cambas. Diz esta autora, que "Igualmente relevante neste processo foi a criação dos museus do contrabando, de que são exemplos o Museu do Contrabando e da Emigração em Melgaço, ou o Museu do Contrabando de Santana de Cambas (Mértola), que, num registo discursivo diferente, cumprem o mesmo objetivo de representação da cultura e identidade das zonas de fronteira e dos que aí vivem ou viveram, numa estratégia claríssima de diferenciação relativamente aos seus pares nacionais. Estes discursos de si são obviamente inseparáveis da fronteira e da sua existência, o que, de uma certa forma, contraria o discurso político que, desde os anos 90, vem enfatizando o desaparecimento da raia luso-espanhola em nome de um novo projeto de relação nas zonas raianas: o da cooperação transfronteiriça. O modo como os raianos conceptualizam a cooperação está distante deste modelo político, europeu: preferem falar da relação social, da amizade de décadas que os liga aos seus vizinhos e da solidariedade que, em momentos específicos, como o da Guerra Civil espanhola, os aproximou ainda mais."

http://etnografica.revues.org/3770

Os presidentes da freguesia (PS) que sucederam ao autarca (CDU) que criou o Museu, (Parabéns, José Rodrigues Simão pela obra que deixaste em Santana de Cambas! )  apesar do espaço ter sido apoiado por fundos europeus, resolveram - sob o pretexto do edifício novo, onde a autarquia funcionava segundo eles não ter condições - ocupar as salas do museu para aí instalarem a Junta. 

É com vergonha que vejo um espaço museológico, que desperta interesse e trabalhos de investigadores nacionais e internacionais, ser assim destratado. 
A memória identitária e o património colectivo, não são honrados, por autarcas de facto eleitos, mas que demonstram ignorância, em vez de valorizar este importante legado, anunciado com imagens dos primeiros tempos da sua existência, no site do Turismo do Alentejo, entre outros...

http://paperroom.ipsa.org/papers/paper_14882.pdf

(Texto e recolha de Luís Filipe Maçarico. Fotos da Net.)

É necessário um Movimento que una o Associativismo pela Salvaguarda do Património

"Gostei de conhecer a freguesia de Leomil e desejo as maiores felicidades, para os seus habitantes e autarcas. Apenas um reparo: Há que valorizar ainda mais o património. O pelourinho tem de estar limpo de estacionamento e na parte antiga não poderá proliferar o alumínio de todas as formas e cores. Fica a sugestão, pois quem vem de longe para ver o genuíno, a marca identitária e da tradição, encontra por vezes portas de alumínio branco lacado, que parecem saídas das caixas de bombons quality street dos anos 60, onde estavam representadas portas londrinas, da época vitoriana...Os centros históricos estão a ficar desqualificados, por falta de ordenação do território....e a vossa terra é do tempo do conde D. Henrique, pai de D. Afonso Henriques." 

Deixei estas palavras, na página Facebook, da Freguesia de Leomil. 
Exorto todos os meus amigos, quando visitarem Portugal, de lés a lés, a reflectirem também, por escrito ou verbalmente, acerca do património das aldeias, vilas e cidades portuguesas, dirigindo estas opiniões às Câmaras, às Juntas de Freguesia, aos Deputados, ao Governo, reinvindicando resposta para as preocupações apresentadas.

Nem sempre as autarquias cuidam bem do território que herdámos, dos nossos antepassados, por isso considero que temos também uma palavra a dizer. Para tentar ajudar a melhorar, o estado das coisas.

Faz falta um movimento, que saia das redes sociais, embora as deva utilizar, para unir os cidadãos do Associativismo, que se bate de norte a sul, pela Salvaguarda do Património, para potenciar o seu trabalho empenhado, no levantamento de problemas, sendo incisivo na exigência do cumprimento de regras que impeçam os atentados, que cada vez se consumam por todo o lado. Os Centros Históricos, se não forem tomadas medidas, em poucos anos sofrerão transformações cada vez mais aberrantes, descaracterizando a herança que os nossos antepassados nos deixaram.

Esclarecer as populações é necessário, não através de mentes iluminadas, mas por parte de gente que interage na Comunidade e pode mostrar o erro e partilhar o benefício para o desenvolvimento, ao tratar-se o património com o cuidado que ele merece.
A ignorância é a raíz de muitas arrogâncias.

É PRECISO AGIR! 

Luís Filipe Maçarico (fotografias de Leomil e texto)

segunda-feira, novembro 03, 2014

Douro: A Viagem é um Texto.

Sobre o Douro há sempre uma palavra de espanto por dizer, por muito que se escreva acerca da desmedida beleza deste território.
Hoje, saí de Fontes, em Santa Marta de Penaguião, com um arco íris maravilhoso, a caminho de Juncal, Marco de Canavezes, e fui surpreendido ao longo da jornada, pelos flocos nublosos, suspensos, rente aos socalcos.
Novembro começou há pouco.
Nuvens escuras ameaçam produzir chuviscos.
Aqueles quarenta e cinco quilómetros, que distam da Régua, foram sorvidos, curva após curva, pelo olhar, como se o sangue bebesse a terra lentamente, as vinhas fulgindo, os cumes cintilando, as aldeolas salpicando a paisagem, coroada pelo rio, os véus de nevoeiro entrelaçando-se, e lá em baixo aquele novelo sinuoso de prata, derramando-se entre margens, com alturas abismais.
Cada miradouro é um romance de visões felizes, que a Natureza e o Homem escreveram em conjunto, por vezes em comunhão, outras em torvelinho.
Frende é um desses locais.
Ali termina o distrito de Vila Real. 
A serra das Meadas, do outro lado, envolta em nuvens, que deambulam sobre casarios, deixa antever as hélices das eólicas, quais asas de pássaros aprisionados no ventre das serras.
Sei de um Mestre Serralheiro de Mesão Frio, que guarda um tesouro na sua oficina, onde nascem portões para as quintas e residências dos abastados.
Que néctar precioso me deu a conhecer!
Ao prová-lo, senti os sóis e o orvalho, tatuados nas pegadas dos trabalhadores vinhateiros, gente tisnada, imortalizada na literatura, carregando os cachos, pisando as uvas, podando as vides, transportando o peso de gerações, calcurreando veredas, para o ouro desta geografia brilhar dentro dos cálices e andar nas bocas do Mundo.
O território do Douro é ele mesmo um Mundo!
Ali, em Frende, sabemos que percorrendo aquela estrofe entornada, o Mar é o limite.
Mas é aqui que escritores e povo procuram a luz mágica que se reflecte na estrada das águas, que o céu entardecido persegue.
Onde as casas são ainda de pedra e os homens conservam patrimónios familiares, gotas de cristal aveludado, fruídas entre descobertas e partilhas.
Conheço paredes de xisto, poisos de sonho, templos de deuses pagãos cristianizados, que contemplam a Terra, cercando-nos de silêncio e brandura, nas tardes de Outono, com castanheiros e videiras cor de cobre.
O petisco e o vinho unem os homens, de vozes enluaradas.
Voltamos de noite, regressando à Régua.
Os luzeiros dos lugares  rasgam o espelho da água como archotes, ou estrelas caídas, com a leveza de plumas.
Transmitem paz.
E a viagem é um texto que inspira novos voos, sobre a pele do rio...

Luís Filipe Maçarico (texto e fotografias)

sábado, outubro 25, 2014

Bem Hajas Marta Sofia, estrela das mais cintilantes!



 

No final deste sábado de Outono, uma notícia terrível surgiu no meu caminho.
Marta Sofia, uma menina linda e ternurenta, actriz com muito talento, que integrou vários elencos do Grupo Dramático e Escolar "Os Combatentes", partiu, quando a manhã raiava, devido a um acidente de automóvel.
Perda enorme para a família (a quem apresento a minha solidariedade), perda grande para a colectividade, para os amigos, para todos os que a conheciam e gostavam de assistir aos improvisos inteligentes e bem humorados, em palco. Ou que privavam com a jovem, que era uma força da Natureza e a todos cativava com a sua delicadeza.
Parece-me de toda a justiça que a actual direcção do GDEC estude a possibilidade de colocar a sua fotografia no Museu da Colectividade e uma placa no salão, evocativa da passagem pelo seu palco desta artista que enriqueceu a galeria dos amadores de Teatro.
Partilho nestas palavras sentidas a saudade que esta amiga deixa no percurso de todos os que com ela se relacionaram ou se deliciaram assistindo às cenas que protagonizou em diversas revistas.
Sabemos que esta noite o céu ganhou uma nova estrela, de certeza das mais cintilantes.
Sabemos que as palavras não chegam para dizer a devastadora dimensão do que sentimos.
Bem Hajas, Marta Sofia pelo rasto que deixaste neste mundo, pelo muito que nos deste.
Um beijinho muito carinhoso à Mãe Alice.

Luís Filipe Maçarico
(fotografias do arquivo do blogue "Águas do Sul")

segunda-feira, outubro 13, 2014

Elvira, Página Viva de Literatura


 
Da janela do sótão dos criados, a velha que acudiu a cinco gerações, espreita o tempo e deita o olhar no Douro serpentilíneo que o patrão escritor cantou.
Saudades tem desse senhor, que comprava tabaco para os jornadeiros dos vinhedos, a gastar a vida nos socalcos.
Saudades das falas brandas, do doutor de leis, que amou várias meninas vistosas e repartia a mesa com os servidores.
Elvira é um sol gasto de músculos e gestos tolhidos por geadas e sóis, que moldaram um rosto ainda enluarado por lágrimas de ternura, pois no lugar do coração tem uma fonte de mel. 
Elvira, nascida nestes socalcos de xisto, espera os viajantes, incautos, que pretendem conhecer a casa recuperada e inaugurada com pompa.
As primeiras palavras destinam-se a espantar os curiosos. Que não, que durou um dia a abertura da casa a um público seleccionado, com exposição de objectos, retratos, móveis e livros, como aquele "Evasão", onde o homem de teres e haveres pergunta à maneira de Brecht, quem construiu as casas, as pontes, quem trabalhou a terra para o rico ter sustento sem esforço e poder para mandar.
É uma mulher da terra, sequinha de talhe mas ainda escorreita no andar.
O mundo de Elvira, é aquela casa, com caramachão romântico enredado em arbustos e árvores e lago com peixes, por onde crianças e jovens devem ter solto gargalhadas e brincado muito.
Os seus olhos viram um corropio de personagens, as suas mãos pentearam meninos e donzelas, trouxeram meninos ao colo, ampararam anciãos, cumprimentaram visitas de gabarito.
Naquele local, onde  - no dizer de uma escritora que também por lá viveu - a casa, parece um barco encalhado, Elvira, com os seus olhos de eterna mãe protectora, é uma página viva de Literatura, entre couves e vinhas, corredores, quartos e salões, memórias e esquecimentos...
Ao longe, o seu sorriso, diz-nos adeus...

Luís Filipe Maçarico

Penaguião, 10-10-14

terça-feira, setembro 30, 2014

AVÓ TI MARIA PIRES

 

 Elas continuam vestidas de preto,
Como no poema de Eugénio.
As velhas da Beira Baixa
São girassóis nocturnos que se acendem
no sol da tarde.
Vultos gregos, oráculos, envoltos
numa caligrafia de nuvens...

Ti Pires tem uma memória prodigiosa,
cita nomes e lugares, momentos, 
numa mistura de factos 
que evaporam o tempo...

Elas continuam mergulhadas
em tecidos azeviche
Furtivos corvos na paisagem...

São ainda as musas de fotógrafos e escritores
As suas vozes ecoam
no vento da Gardunha.
São clarões de resistência, entre fraguedos.
Majestosas Deusas do silêncio.


Luís Filipe Maçarico 30-9-14

quinta-feira, setembro 11, 2014

A Tragédia da Rua dos Peixes Bicudos


Nini era filha de um guarda de passagem de nível, sem guarda, e de uma vendedeira de preservativos libelinha ( o prazer de um orgasmo com asas), escondidos entre marmelos e violetas, na canastra.
Um dia conheceu um mono, que estava morto sem saber, Mémé, da idade da sua filha Caló, que sofria de gases e ataques fulminantes, por causa de ser alérgica à Coca Cola, mas que não conseguia resistir a beber litradas daquele refrigerante, peidando-se, arregalando os olhos e vomitando chumaços de beatas lambidas nas fúrias.
Quando ficava possessa, Caló que queria ser Tójó, partia tudo o que tivesse à mão (ou ao pé).

Naquela noite os amantes desentenderam-se e Mémé aplicou um soquete na moleira de Nini, que uivou de dor. Caló estava por perto e reagiu. As goelas ficaram escancaradas a grunhir. Ouvia-se em Portimão e os pescadores tiveram de trazer os barcos para o cais, tais foram as vagas. na sequência da gritaria sobrenatural.
Umas fadistas castiças, que se preparavam para gargarejar saudades da lisboa antiga, perderam os xailes e as dentaduras, levados pela ventania de cromossomas perdidos, que irrompeu com a berraria intermitente.
O Rei dos Pipis foi empurrado, quando tentava servir uma mesa, que foi regada com sangue fresco.

Mémé fugiu para um autocarro vaivém.
A filha que quer ser filho e a mãe que esgotou as palavras simpáticas dos bêbados do bairro, tal é o pesadelo da sua aparição, foram com a ramona.
E o Rei dos Pipis seguiu no 112 para tratarem do lenho.

As cuscas ainda estão no banco das versões e a história (que parece real, que parece inventada) que vos contei, já tem tantos pontos que são mais que as mães os contos.

Esta é a Rua dos Peixes Bicudos. Como diz a vizinha do lado, janela com janela "já viu que não somos nada? Quem diria que o Rei dos Pipis havia de partir a cabeça esta noite?"

NOTA: Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

LFM (texto e fotos)