"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

domingo, maio 27, 2012

Entre os Vestígios da Mértola Islâmica e os Gestos que Criam Futuro. Notícias do XXI Encontro da Aldraba. Segundo Dia.

Este domingo, segundo dia do XXI Encontro da Aldraba, os participantes preencheram a manhã com uma caminhada nos trilhos do Minério e do Contrabando, entre Santana de Cambas, Mina de S. Domingos, Achada do Gamo, Montes Altos, regressando a Santana. José Constantino Costa, da revista Itinerante, foi o organizador do percurso.



O almoço no Alengarve, em Mértola, envolveu um cozido de grão que estava um espectáculo e um doce de amêndoa e gila, que se recomenda, pelo cariz conventual da receita.
A tarde decorreu entre a Mesquita /Igreja Matriz da vila e a alcáçova do castelo, tendo o grupo sido magistralmente acompanhado pela Professora Susana Gomez, do Campo Arqueológico de Mértola.

Após dois meses da realização de um encontro em Odivelas, a Aldraba continuou a cumprir, de forma estimulante, o seu projecto, desta vez no Baixo Alentejo, entre os vestígios de uma civilização que marcou o Mundo e a solidariedade para com os vivos que transformam os dias, criando futuro.
Bem haja a todos!
Luís Filipe Maçarico (texto e fotos)

XXI Encontro da Aldraba em Mértola - Notícias do Primeiro Dia


A Aldraba realizou ontem, dia 26 de Maio e hoje, o seu XXI Encontro, entre a Mértola Islâmica e a Raia do Contrabando.
O vasto e intenso programa incluiu uma sessão inicial no Campo Arqueológico de Mértola, a cargo do Professor Cláudio Torres, Dr. João Miguel Serrão Martins, em nome da Câmara Municipal de Mértola, que apoiou a Aldraba, proporcionando a entrada nos espaços museológicos visitados e o presidente da direcção da associação, Eng.º José Alberto Franco.
Com real interligação com a Comunidade e a adesão de alguns amigos, que vieram de concelhos vizinhos, este encontro decorreu com agrado geral e um enriquecimento e convívio entre os participantes, que ficará certamente na história desta associação, cuja vocação é a salvaguarda do património e do espaço popular.
Seguiu-se uma visita ao Museu Islâmico, onde um dos participantes, presidente da ADPM, a convite de Cláudio Torres, evidenciou a importância do desenvolvimento local e do associativismo que valoriza as potencialidades regionais, proporcionando emprego.
O almoço (um delicioso gaspacho, entre outras iguarias maravilhosas) foi no Centro de Apoio a Idosos de Moreanes, na presença de dirigentes das associações envolvidas e dos que no terreno aprofundam conceitos como solidariedade, fraternidade, partilha, tendo o dr. Miguel Bento realçado a influência, desde muito cedo, do associativismo mutualista no concelho.

Muito emotiva foi a visita ao Museu do Contrabando, onde alguns sobreviventes contaram, diante de um grupo muito interessado, o seu testemunho, acerca daquela actividade, desenvolvida durante vários anos. 
Francisco Pereira e Francisco Neto, além de Maria Júlia Carrasco, que evocou a Guerra Civil de Espanha e o papel incontornável de seu pai João Carrasco, foram protagonistas das quase duas horas vividas naquela instituição, criada por José Rodrigues Simão, cujo nome ficará ligado ao património local, pois foi igualmente o obreiro do Centro de Apoio a Idosos de Moreanes, tendo editado dois livros que guardam a memória da freguesia.
Os participantes dirigiram-se  entretanto à Casa do Mineiro, tendo escutado a intervenção da responsável por aquele espaço e visitado alguns espaços emblemáticos daquele território mineiro.
O programa do primeiro dia terminou com um jantar convivial no restaurante Tamuje, seguido de uma noite de fados no CAIM.
Luís Filipe Maçarico (texto e fotografias)

segunda-feira, maio 21, 2012

A ESSÊNCIA DE UM PRODIGIOSO SEMEADOR: CELEBRANDO JOSÉ FIGUEIRAS, NA APRESENTAÇÃO DA ANTOLOGIA POÉTICA “POR FEITIÇO, POR MAGIA”



Completam-se agora dois anos sobre a minha primeira participação nas Jornadas de Cultura Popular, graças à Professora Laurinda Figueiras e ao senhor Nicolau Veríssimo, amigos dilectos a quem agradeço a excelência dos momentos que tenho vivido no Minho desde então.
O facto de ser, como eles, Associativista, ter formação em Antropologia e ser Poeta, proporcionou o encontro com a obra de José Figueiras e o seu percurso de homem empenhado na preservação da Tradição, dos costumes, práticas e rituais, como na salvaguarda da memória, da oralidade, do património e da identidade. O fascínio que sentimos, pela grandeza do seu testemunho, está patente naquilo que escrevemos neste livro tão desejado. Hoje, José Figueiras renasce, para celebrarmos o merecido destaque do Poeta da Alma de Viana.
Inicialmente, o projecto revisitava o Cidadão, o Etnógrafo, o Associativista, o Poeta, o seu Legado, as Evocações e as Omissões. Todavia, a revelação de uma substancial produção poética fez-nos optar por este primeiro volume, em que damos a conhecer o Lírico. O retrato completo, esperemos que assim possa acontecer, sem impasses nem contratempos, concretizar-se-á no próximo ano, havendo ainda muito trabalho pela frente. A pesquisa, contudo, vai avançada…
Realizámos entrevistas a familiares, vizinhos, amigos, admiradores. Recolhemos inúmeros artigos, em diversos periódicos locais. Da Biblioteca Municipal à redacção do “Notícias de Viana”, o espólio inventariado, à espera de análise é riquíssimo. Com a preciosa colaboração das netas Carolina e Sofia, o magnífico entusiasmo de Nicolau Veríssimo, a lembrança luminosa do filho Henrique, cuja concertina nos transporta até à raiz do ser, com o sangue dos Figueiras no ADN e a espantosa energia e tranquila sabedoria de Laurinda, a quem todos devemos esta maravilhosa prenda para a cultura minhota, no centenário do nascimento de um excepcional José, de coração grande e sonhos intemporais.

Entre Lisboa e algumas férias em Viana, por email e telefone, corrigiram-se imprecisões, superaram-se lacunas, acrescentaram-se dados e o livro foi ganhando corpo.
No meu olhar sobre os versos do Fundador da Ronda Típica da Meadela, além do som das sílabas, na excelente declamação de Júlio Couto e dos ecos do mágico espectáculo dos 50 Anos do Grupo no Teatro Sá de Miranda, está subjacente a observação - participante, fruindo a mística e inspiradora Serra de Arga, o São Silvestre de Cardielos, o mar visto do Carreço, ao crepúsculo, Santa Luzia, o Solar das Werneck, os objectos, o espaço sagrado da casa e o jardinzinho onde pairam recordações do notável vianense, que eu gostava de ter conhecido.
Assisti a ensaios da Ronda, acompanhei-os no Natal, de rua em rua e na Basílica da estrela, vi o túmulo do nosso homenageado, com emoção, por saber que o seu fôlego levou bem longe o nome de Viana, ajudando a formar cidadãos, no amor pelas origens.
A essência de Figueiras, a cintilação do seu estro, cativou-me, para ser veículo do fecundo desidério de Laurinda, que pegou com sensibilidade e inteligência - e perdoem-me a indiscrição - no texto, efectivamente escrito a duas mãos, onde abordamos a biografia do Mestre, sendo a arte final uma terna aproximação à vida do Homem e à viagem do Artista.

Em vão procurei, nesta mesma Biblioteca, onde avultam os nomes de Pedro Homem de Melo e António Couto Viana, a cintilação do talento de Figueiras, os quais, apesar de conhecedores do prodigioso semeador, porventura o desconheciam, naquilo em que ele mais se irmanava a estes autores.

Chegou a hora de fazer justiça e retirar do esquecimento, esta faceta brilhante desse sublime Romeiro do Cosmos, do cidadão marcante, habitado pelo espírito crítico, dramaturgo, etnógrafo, vate, homem livre, co-organizador da mais bela imaterialidade, que são as romarias desta região, que os contextos poético - sócio - culturais e a própria discrição pessoal não permitiram evidenciar.
Honremo-lo, para lá do nome de rua e da digna condecoração, naquilo que mais nobre tem a memória - através das páginas de um livro, onde a vida respira, onde eterno revive o Herói, na voz da terra que é a música dos corpos em festa.
E que assim seja, “Por Feitiço, Por Magia!”  

Viana do Castelo, 19-5-2012
Luís Filipe Maçarico

domingo, maio 13, 2012

Abílio Duarte: O Mestre da Esperança e do Sonho



                                                       Abílio Duarte, em Outubro de 2010         


                                                                  CRETA

Naveguei pelas águas de Homero
Mareei límpidas marés de Ulisses,
Recordação perpétua eu quero
Lembrar destes mares feitos felizes.

Por mil ilhas Gregas serpenteei,
Por mar calmo, meu olhar vislumbro Creta,
De súbito a minha musa encontrei,
Senti a obrigação de ser poeta.

Quão pequeno e humilde me senti,
Ao pegar na pena que quis ser recta
Ao fazer poema só p’ra mim.

Fiquei muito aquém daquele poeta,
o épico marinheiro, eu perverti.

Mais rimar eu desejei,
                                               Quando da ilha de Creta me apercebi. 

 Poema do livro de Abílio Duarte "Marés da Minha Vida", edição de autor, Lisboa, 2010.

 
                                          Imagens dos jardins do local onde o poeta fadista está internado


Esta tarde, fui visitar o poeta e fadista Abílio Duarte, internado nos cuidados paliativos, de uma unidade hospitalar particular, em Belas.
Trago uma recordação luminosa deste Amigo, desde há dois anos com uma grave doença, que vai tolhendo a sua capacidade de locomoção. 
Encontrei-o animado, com a mesma vontade de viver de sempre. 
Em 2010, um punhado de amigos fez-lhe um livro de poesia, apresentado numa casa de fados da capital: "Marés da Minha Vida". 
Esgotou-se a casa e o livro, mas não a energia do Mestre, que continua o homem esperançoso e lutador, que conheço há décadas.
José Manuel Osório, disse dele que tinha a categoria de um Linhares Barbosa, Carlos Conde ou Francisco Radamanto, e eu, sem saber que o especialista do Fado pensava da poesia deste velho mareante, lancei-me na aventura de levar a bom porto o barco dos sonhos, com a preciosa ajuda da Ana Isabel Carvalho e da Marta Barata.
A esposa, Conceição, mulher de aço, emotiva e dedicada, vende no mercado de Campo de Ourique, passando a vida a correr de Odivelas para o seu ganha-pão e depois para Belas, levando mimos e amor ao homem da sua vida.
Durante a longa conversa que tivemos, falámos de tudo, do Fado, das Marchas, do Associativismo, do Mundo, da Política, e a certa altura, diz-me o Abílio "O nazismo não precisa de uma Terceira Guerra Mundial, para se implantar. Já está implantado!"
Sábio Homem, este Poeta do Povo, de um tempo em que os seres humanos, provenientes de condições sociais desfavoráveis, nem por isso deixavam de ter formação e escala humana. Agora, pelo que vemos, ouvimos e lemos, a posição social elevada corresponde muitas vezes a uma incubadora de gente que desconhece a palavra dignidade.
                                                    Abílio Duarte, com a esposa, em Outubro de 2010 


Deixámos o Poeta e Fadista, cuja infância passou pelo Bairro da Bica, com um sorriso, sereno, por ter tido visitas que não tendo sido nenhum milagre de 13 de Maio, consubstanciaram a vontade de quem estima e é amigo verdadeiro, acredita na força do Cosmos e na Harmonia da Natureza.
Tenho a certeza que hoje o sono do meu Amigo Abílio vai ser muito tranquilo.
 
Luís Filipe Maçarico (texto e fotografias)

Respigo estas passagens da introdução  (de minha autoria) ao livro "Marés da Minha Vida":

ELEMENTOS PARA UMA BIOGRAFIA DE ABÍLIO DUARTE – FADISTA, POETA E MAREANTE

Abílio Duarte nasceu em 28 de Novembro de 1937, na freguesia das Mercês, em Lisboa. O pai, natural de Setúbal “foi pescador e descarregador de peixe” e a mãe, originária da Madragoa, “vendia peixe”. “Em miúdo, conta este filho do mar, cheguei a estar aqui na Ribeira; apanhava baldes de água para lavar as tecas do peixe.” Criado entre a Bica, Madragoa, o Casal Ventoso e Chelas velho, Abílio Duarte é neto de um algarvio, pescador dos galeões (avô paterno) e de um serralheiro do Arsenal (avô materno).

Reformado da marinha mercante e tendo sido serralheiro de precisão de moldes para plástico e de cunhos e cortantes, Abílio assegura, com ironia: “O Salazar ensinou-me a ser comunista!”[1] Acerca do seu percurso profissional afirma: “Fui um saltimbanco, sempre entendi que trabalhar numa mesma casa era atrofiante.” Tendo viajado por todo o Mundo várias vezes, recorda: “América quase toda, uma parte do Brasil, uma parte de África, Ásia…Japão, a Itália toda e a Turquia. Só não fui à União Soviética!”

Abílio Duarte começou a escrever para fados, a partir de um episódio estimulante: “Em 1959, quando fui trabalhar para a Marinha Grande (estava ligado ao fado e trabalhava) foi quando acabei a tropa…queria casar e fui para a Marinha Grande…comecei a sentir a saudade do Fado, foi quando fiz a homenagem ao Alfredo Marceneiro. Tive a felicidade de cantar versos, em dueto, com o Alfredo Marceneiro na casa da Maria Teresa de Noronha, em Cascais. Era casado com a Julieta Reis[2]. Comecei a cantar, a primeira sextilha, que é dum fado do Marceneiro - “Natal do Prisioneiro” - quando canto a segunda, manda-me calar, improvisa o elogio que lhe estava a fazer, cantamos a seguir os dois. Foi dos momentos mais lindos, foi ter a felicidade de fazer um improviso com o Alfredo Marceneiro! A partir daí comecei a fazer algumas quadras (o marítimo é um homem sozinho).”

Das leituras dos diversos escritores que o enriqueceram, salienta António Aleixo, Carlos Conde, Ary dos Santos, Cesário Verde, Álvaro de Campos. “Fui apanhando bocadinhos aqui e acolá. O jornal “A Bola”, quando era trissemanário, à quinta-feira trazia um manancial de formação, feito por rapaziada de esquerda. O “Diário Popular”, ao sábado trazia cultura!...”
Escutámo-lo, longamente, desfiando um rosário de sombras. Com pudor, recolhemos os dados primordiais para esboçar o retrato. E quisemos saber como foi o tempo de ser criança: “A minha infância…pronto! Eu estava perto dos oito anos quando morreu a minha mãe. O meu pai tirou-me à minha mãe e fiquei a viver com a minha avó aqui na Baixa. Porrada foi mato e cara esfregada no colchão.
Estava a comer sopa de massa[3], o meu pai chamou-me: “Olha, a tua mãe morreu, a tua avó vai-te levar, quando lá chegares abraça a tua mãe.”[4]
As memórias doem, têm um sabor amargo: “Juventude, não tive! Não tinha relógio, cheguei sempre cedo ao trabalho. Levava a lancheira para o trabalho, dormia num vão de escada, na Calçada Salvador Correia de Sá, no nº 19, com a minha avó materna…”

 (...)
 
Abílio considera que “A vida nas oficinas, com os colegas serralheiros, que é a vanguarda da classe operária, foi essa vivência que me ensinou. Eu não me abstraía, eu agarrava tudo. E a vida do Bairro Alto também me ensinou. Casei com vinte e dois anos e ensinei a mulher, que tinha vinte e quatro, a pôr uma fralda, pela experiência que tive no Bairro Alto.”[1]
“A vida obrigou-me a ir para a luta”, confirma.

Abílio chegou aos setenta anos com a dignidade e candura dos sábios.
Associativista, ex-presidente da mesa da Assembleia Geral do Grupo Excursionista “Vai Tú”, da Bica e participativo, nas noites de fado das colectividades e da “Tasca do Careca”, continua a vender peixe ao lado da sua terceira mulher, no mercado de Campo de Ourique.
O sorriso, talvez o tenha trazido de longe, das mil andanças, e como os pescadores de pérolas, deslindando tesouros no fundo do oceano, assim desanuvia rosto e gestos…
Quando canta, cerra os olhos e a voz, rouca, desenha pegadas sofridas, ou celebra patuscadas bem regadas.

O quotidiano de um mareante tem altos e baixos, como as ondas do Mar. A vida de um poeta não é menos contrastante…

Os seus versos essenciais e profundos alojam o ferrete de diversas etapas da caminhada, adversas. E um ou outro instante de júbilo.
Por vontade de Mestre Abílio passam a ser património de todos. A sua fruição em livro é a melhor homenagem que podemos fazer a este homem - acompanhando-o nos passos que a existência lhe impôs.
Libertemo-lo do peso de um destino áspero, pois o afecto pode ser lenitivo, atiçando sílabas de contentamento.
Bem hajas, Poeta, pelo teu exemplo partilhado, por esta vontade de soltar a alma, que te fez transcender as amarras que apertam o barco ao cais, o marinheiro ao fadário e o sonho à ousadia de voar.

Luís Filipe Maçarico





[1] “O Salazar a mandar sobras para a Alemanha e a Espanha e a minha mãe morreu com 28 anos tuberculosa e os irmãos dela morreram com tuberculose” (depoimento em 9 de Agosto de 2007).
[2] Primeira mulher.
[3] “E a última refeição com a minha mãe foi massa guisada com carne…”
[4] Depoimento em 10 de Agosto de 2007.