"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

domingo, dezembro 19, 2004

Dois textos do Mané sobre a Musgueira

Continuamos a divulgar as memórias que o Mané transformou em textos para falar do bairro onde morou na sua infância. Os textos datam já de março deste ano e em Novembro digitalizou-os e enviou-mos.
Reproduzo desejando a ele e a todos os meninos desse tempo menos bom que desta vez o Natal seja uma desforra de Paz e de Amor.
O DENTISTA*
Tenho saudades da Lisboa, onde os pregões e a venda ambulante, se destinavam somente à zona esquecida. Vagas lembranças de cheiros e sons que rodeavam a minha barraca, aconchegada como uma casinha de bonecas, onde é fácil tudo apanhar e aquecer. Bairro esse onde toda a gente se conhecia, não só o carteiro, o fotógrafo e o dentista que ia a casa das pessoas, que por vezes era mal tratado com gritos e nervosismo, porque o pai do paciente queixava-se que ele fazia mal ao filho, depois de ouvir os gritos de dor ou medo da criança que não temia a ida aos caracóis com o pai em terrenos escorregadios, ou na pesca, muito menos as pequenas guerras de rapazes de ruas vizinhas depois de ter jogado ao berlinde e troca de cromos raros menos correcta do que costume onde lhe davam alguns pontos negros e gesso, para além de uma dor de cabeça à mãe, pelas caminhadas ao hospital. (17/03/04)
GATOS E POMBOS
Não esqueci como aprendi a conhecer os barulhos dos gatos, através do meu telhado, não só sabia quantos eram como quase que percebia o que queriam. Aprendi sem me aperceber, tanta coisa sobre eles no dia a dia, mas foi à noite que mais aprendi sobre zoologia. O mês mais chato era realmente o do cio, pois a concorrência era muita num telhado de zinco, aquecido pelas tardes de pleno sol, não sei se acontecia com todos os meus vizinhos mas no meu telhado parecia um forrobodó. Cheguei mesmo a castigar os gatos dos quais conseguia reconhecer o miar, depois de ter passado uma noite insuportável. (18/03/04)
Tantos gatos e animais caseiros que conheci, tanta coisa que transcrevi para o meu quotidiano, numa criança que brincava com os buracos da terra, caricas, montes, palhas, pedras, capoeiras, quintais e pequenas hortas para as escondidas. Tive um gato, que lhe chamava Pantera, não porque fosse preto, mas porque caçava de noite, tinha manchas brancas, grande e gordo pela eventual caça nocturna. O meu vizinho cansou-se de perder os pombos correios e ficou à espera do responsável. Acabou por dar um destino mais triste para a minha veloz Pantera. Nunca senti pena por esta perda, pois ele era muito independente. Engraçado, dizer isto de um gato! Não era mau vizinho. Tinha uma bata azul todos os dias e um apito na boca, que percebi, era para comandar os pombos. Era caçador e coleccionava pombos correios.Talvez lhe dessem asas para imaginar voos infinitos que lhe eram impossibilitados pelas tarefas laborais e de uma vida mais difícil neste canto do mundo,com quatro filhos para sustentar, onde até mesmo a morada metia medo ás entidades patronais.
Cheguei mesmo a guardar as medalhas de caça, eram umas argolas, nunca percebi para que serviam, mas creio que é uma marca, ficava agarrada à pata do bicho, que a Pantera não achava comestível, deixando no meu pátio traseiro. (18/03/04)
Manuel José Graça da Silva
*Títulos e revisão do texto LFM

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