"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

quarta-feira, dezembro 21, 2005

NUM LUGAR AO SUL, AS PALAVRAS REENCONTRAM O CONTRABANDO NA MEMÓRIA E NA IDENTIDADE




Palavras proferidas no lançamento do livro "Memórias do Contrabando", em Santana de Cambas:

Há muito que idealizei partilhar convosco, a minha profissão, este olhar que procura saber mais acerca de quem somos, as raízes, os comportamentos, os costumes, as tradições.

A antropologia é, desde há uma década, a função que exerço no Município de Lisboa, mas também em artigos e trabalhos académicos, tentando entender a personalidade poética do alentejano, o Alentejo, o cante e os seus poetas, a função antropológica das aldrabas, o associativismo comunitário, os processos de construção de um herói do imaginário popular e estas “Memórias do Contrabando em Santana de Cambas”, que hoje apresentamos, numa terra de onde se vê a raia…

Conheci o concelho de Mértola há vinte e cinco anos, quando o cometa Halley andou pelos céus do Alentejo, sob a forma de um lagarto de prata.
Calcurreei a vila de Serrão Martins, com a emoção que se tem quando se desvendam tesouros intactos, que o tempo não corrompeu.

A Amendoeira do Campo foi a primeira cintilação que encontrei, no início da minha caminhada de mais de duas décadas por estas terras do Guadiana, guardando depois nomes mágicos de muita sabedoria e solidão: Vale de Açor, Algodor, Alçaria Ruiva, Mina de São Domingos, Pomarão...

Provei a lampreia do Vivaldo, entrei no velho Cine - Teatro, percorri os núcleos museológicos e vi-os crescer, com os jovens que nos ensinavam a olhar as marcas do tempo, enquanto contemplava a minúcia paciente e criativa da Nádia a semear sonhos.

Fui aprendendo outros nomes, nomes de pessoa: Cláudio, Santiago, Paulo; Jorge, Miguel, Manuel, Margarida, José, Dina… E Mário, o Grande Elias, vagabundo aguarelista, espelhando a glória e a tragédia do ser humano, na tela e na errância.
O relâmpago das suas gargalhadas ecoará no labirinto destas ruas, enquanto houver memória e cegonhas.

Dez anos decorridos sobre a primeira viagem e de muitas outras, trazendo rios de amigos, foi a vez de saborear iguarias e sorrisos na “Cegonha Branca”, uma descoberta primorosa para quem busca a sabedoria dos temperos e a essência dos gestos.
Nesse tempo, o José Rodrigues, a Dina e os filhos Filipe e Hélder, animavam aquele lugar onde quem vinha de longe se reconfortava na delícia do petisco e no sorriso dos amigos.

Fui voltando à “Cegonha Branca” e a Mértola até que dei comigo a estreitar laços com esta gente e a visitá-los, com tanta satisfação, como o faço na Tunísia ou em Alpedrinha.
Moreanes e Santana de Cambas foram sendo redescobertos, à luz da fraternidade. E os Picoitos, os Bens, a Formôa, os Sapos, os Salgueiros e Vale do Poço. Mais a Maria Júlia, seu pai João Carrasco, a Ti Angelina e tantos outros.

Durante o I Festival Islâmico nasceram novas amizades.
Eduardo Ramos é um dos nomes associados à varanda de asas que é Mértola, expoente da arquitectura de taipa e das ruelas de casario branco, alicerçadas na magia de uma História com Futuro, que descem enlaçadas nas amendoeiras até às águas do Guadiana.
Voltei sempre, deliciado, a este momento único das festas reinventadas do sul, em que os tendeiros do souk ficam mais perto do céu.

Voltei sempre porque como diz um poema de Brecht, que aqui rescrevo em tradução livre:

“Casinha no meio de árvores junto ao lago
Se o fumo não saísse da chaminé
Como seria triste a paisagem…”

Um dia, há três anos, durante umas curtas férias, o José Rodrigues desafiou-me para uma recolha etnográfica.
Desde então acompanhei-o em situações diversas:
Nesse Maio de 2003, no Pomarão, durante os festejos do 1º de Maio, essencialmente lúdicos, à volta de comes e bebes fartos.

Antes disso, já presenciara a alegria dos mais velhos, aquando da inauguração da Capela Mortuária de Picoitos, onde houve beberete e versos de satisfação.

Escutei longamente os habitantes da vila, da aldeia, dos lugares e dos montes que nele buscam solução para todos os problemas, do telhado partido ao frigorífico avariado.

Vi-o levar refeições e uma palavra de conforto aos idosos da freguesia, na sua qualidade de presidente do Centro de Apoio aos Idosos de Moreanes.

Assisti a uma procissão das velas em Vale do Poço, em Outubro de 2004, lugar dividido entre dois concelhos, onde nunca houvera um templo e que ele ajudou a erguer. Vi mais uma vez o agrado das pessoas - apesar de não ser indivíduo ligado à religiosidade – por ele estar ao lado da Comunidade.

Foi este ser humano laborioso, indivíduo de honra e palavra, que pela sua postura cívica me cativou, envolvendo-me numa acção voluntária tão estimulante, que me sinto muito grato pelo conhecimento enriquecedor, enquanto antropólogo, proporcionado pelos contactos realizados essencialmente na freguesia, mas também noutras áreas do concelho e em Espanha.

Os homens marcam as terras pelas vistas largas.
Este homem ficará para sempre ligado, aparte as obras visíveis no quotidiano, à memória do seu povo, cujas histórias de vida desejou escutar, registar e partilhar através do livro, metódica e serenamente tecido entre Lisboa e este território, em constantes visitas, em conversas, gravações, fotografias, palavras.

O presente trabalho é um contributo para se preservar uma memória local, dando voz à experiência dos mais velhos, à marca identitária que o seu percurso conferiu aos lugares onde se desenrolaram os factos analisados.

Para Santiago Macias, o facto de não existirem trabalhos de investigação, em Portugal, acerca do contrabando, prende-se com a estigmatização a que estavam sujeitos, socialmente, os indivíduos que praticavam aquela actividade (ilícita, secreta e por conseguinte geradora de constrangimentos).
Ainda hoje, e ao longo da pesquisa pudemos constatá-lo, como a reminiscência do contrabando é motivo de vergonha para alguns dos intervenientes.

Em “Los Mochileros”, António Ballesteros Doncel diz que “la vida del contrabandista tiene mucho de lobo, algo de mastín y bastante de caballo.”
Ao longo de todo o interior as histórias, embora com variações, assemelharam-se.

O tempo do contrabando, consequência de um contexto político totalitário, foi um tempo de limites.

Entre a linha imaginária, que pretendia separar povos e o poder ditatorial, que impedia a livre circulação, o contrabando atravessou fronteiras e aproximou seres humanos, fortalecidos pela cumplicidade, numa união proibida de entreajudas.

Miguel Ángel Melón Jiménez, no seu estudo “Hacienda, comercio y contrabando en la frontera de Portugal, siglos XV-XVIII”, confirma a motivação dos indivíduos para desenvolverem esta prática. A fronteira foi “la única esperanza de un considerable ejército de marginados y desposeídos.”

No regresso de uma das viagens à região raiana de Espanha, onde entrevistámos velhos contrabandistas, ouvimos ti Chico Neto dizer em voz alta, enquanto olhava a paisagem: “O que nós passámos nestas terras! Até custa a acreditar!”

Decorridas três décadas sobre o 25 de Abril, onde está o olhar português do futuro, acerca do contrabando?

Morreram indivíduos, pobres ficaram por vezes mais pobres, houve prisões, apostadores com visão enriqueceram, a Guarda-Fiscal desfez-se do espólio documental segundo é voz corrente (ou aferrolhou-o), o qual poderia ajudar a reproduzir uma fase da vida colectiva, e faltam espaços memoriais, que contem esse quotidiano de pessoas e objectos, com testemunhos documentais e áudio – visuais, para a comunidade balizar o passado, desinquietando o olhar e o pensamento dos que vão nascer.

Santana de Cambas, foi um lugar singular, nestes difíceis contactos ibéricos. Não obstante os obstáculos, a maioria dos contrabandistas sobreviveu aos revezes impostos. E se uma parte considerável, quando acabou o contrabando, teve de procurar fora da terra o sustento, ficaram os familiares para efabular e alguns actores para consolidar lendas.

Em boa hora esta Junta de freguesia tomou a decisão de evocar protagonistas e peripécias.
Por todo o lado a moda dos trilhos e das rotas do contrabando começa a ocupar responsáveis locais, operadores turísticos, gente sequiosa de experimentar emoções novas, tendo por base o que outros sofreram.
A presença de antigos contrabandistas e guardas-fiscais reformados começa a ser solicitada para in loco, recordarem vivências. A recordação das aventuras e dos sofrimentos enfrentados, alimenta agora hipóteses de lazer e conhecimento.

Em Santana de Cambas, a intenção – concretizada - de guardar numa publicação a memória do povo, torna premente a ideia já esboçada de um “Museu do Contrabando”, que a ser consubstanciada, assegurará uma das mais interessantes homenagens ao passado humilde e lutador das gentes da raia, servindo de modelo e referência para outras localidades fronteiriças.

Tantas palavras guardadas. Tantas vidas, tanto sofrimento. E tudo para ter direito a respirar, sonhar, existir, sobreviver. Para alimentar e criar filhos, famílias, salvaguardando o património maior que são as pessoas, teimando em manter a identidade da fala e das artes da vida.

Foi assim com a mulher que pariu o filho, atravessando ribeiras, foi assim com o homem que só calçou sapatos com 16 anos, foi assim com o rapaz que queria comprar roupa para ir aos bailes mas foi morto pelos “crabineros”, foi assim com o guarda que fingia não ver os contrabandistas e com o outro que se metia no meio deles para lhes apanhar cargas, foi assim com a menina que aprendeu as primeiras palavras ao colo de um contrabandista, foi assim com os afogados, foi assim com aqueles que ainda estão vivos para contar como foi.
Luís Filipe Maçarico
(fotografias de Paula Lucas da Silva, retiradas do blogue http://serraecidade.blogspot.com )

2 comentários:

Manuel Silva disse...

Para lá do trabalho e do escritor, também houve qualquer coisa que me arrastou na curiosidade e vontade de conhecer a origem da construção deste trabalho.
Porquê em Santa de Cambas e não em outras terras de contrabando?
A resposta encontrei no lançamento do Livro e nos dois dias que passei nas terras Alentejanas. Não querendo por de parte, todas as dificuldades vividas numa época em que o contrabando dava alguma razão de viver para a maioria dos moradores nos arredores de toda a linha fronteiriça talvez dê um especial carinho onde fui admiravelmente recebido, convidado e acolhido. Gostei imenso e quero voltar a ver essas pessoas que transbordam de paz e carinho, por quem passa, para lá ou para cá.

MonteMaior disse...

Ler o seu blog é de encher a alma!
Gostava de saber escrever assim!