INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA EM GOA E TRÊS CURSOS SUPERIORES EM COIMBRA
Júlio Adeodato Barreto nasceu em Margão, no contexto do antigo espaço colonial português na Índia, no dia 3 de Dezembro de 1905, dia de S. Francisco Xavier.
Referindo-se ao pai de Adeodato, Lúcio de Miranda afirma que era um erudito, poliglota e melómano, o que provavelmente terá influenciado o filho nas suas tendências intelectuais, manifestadas desde a escola primária.
Tímido, passou despercebido dos professores, tendo redigido os primeiros versos e o primeiro jornal, manuscrito e ilustrado com desenhos a pena, aos doze anos. Após o Liceu Municipal de Margão, os estudos prosseguiram em Pangim.
Em 1923, com 17 anos, Adeodato saiu de Goa, para se matricular na Universidade de Coimbra onde, durante oito anos, completou três cursos superiores, fundou com o apoio de alguns professores da Faculdade de Letras um Instituto Indiano, dirigiu o periódico “Índia Nova”( publicado entre Maio de 1928 e Maio de 1929), desenhando e executando xilogravuras destinadas a ilustrar os artigos, prestando auxílio a desprotegidos e presidindo ainda ao Centro Republicano Académico, onde proferiu conferências. Romain Rolland e Tagore incentivaram-no e aplaudiram-no na criação do Instituto Indiano e das suas ideias pacifistas, que se identificavam com a postura de Ghandi.
Apesar de formado em Direito (1928) e Ciências Histórico - Filosóficas (1929), o diploma obtido na Escola Normal Superior permitiu-lhe leccionar durante algum tempo. Adeodato Barreto tornou-se assim professor na Figueira da Foz, na Escola Industrial Bernardino Machado, conciliando o ensino com a colaboração em jornais e revistas (“Voz da Justiça”, “O Diabo” e “Seara Nova”).
Foi contudo na área das leis que o seu desempenho profissional se especializou, primeiro em Montemor-o-Novo, enquanto escrivão de direito, (onde nasceu o seu filho Kalidás), depois em Aljustrel, exercendo o notariado. Ao mesmo tempo, as suas preocupações humanitárias e pedagógicas aprofundaram o carácter altruísta, num permanente exercício de cidadania. Lúcio de Miranda alude à promoção de conferências, à fundação de uma Liga Pró - Instrução e à instalação de um curso gratuito para ensino de analfabetos adultos na cidade de Curvo Semedo.
EM ALJUSTREL, DESPERTANDO CONSCIÊNCIAS
Na sua obra “Filhos de Aljustrel”, p.67, Francisco Rasquinho assinalou: “Veio de longe Adeodato Barreto, dos confins do mundo e teve Aljustrel a ventura de ter sido alvo dessa estrela cadente que aqui se repartiu em fulgurantes cintilações influenciando caracteres e despertando consciências.”
Luís Amaro, no livro “Para Lá da Névoa”, 2005, p.23, revelou: “Aprovado no exame primário, empreguei-me no referido escritório do Dr. Adeodato Barreto (1905-1937-vida breve!), o primeiro escritor, de facto, com quem me foi dado privar, autor duma Civilização Hindu (Seara Nova, 1935) sobre cujas provas me lembro de o ver, e ultimamente reeditada com estudos introdutórios de Orlando Costa, Elsa Rodrigues dos Santos e Teotónio R. de Souza. O Círculo, semanário local que fundou e seria em breve proibido, foi um dos meus fascínios, antes de conhecer-lhe o director, alta figura de indiano, que se formara em Direito na Lusa Atenas, onde ia jurar, conheceu os presencistas (muito posteriormente, Gaspar Simões incluiu-o na poética série antológica que, anónima, organizou para o suplemento “Domingo” d’O Primeiro de Janeiro). Mas os interesses do Dr. Barreto (…) convergiram noutro sentido - O Diabo, a Seara Nova que lhe editou a obra magna…No cartório, aprendi tão-só, porém, a dactilografar sem mestre. E de Adeodato, que na terra difundiu o Esperanto, o seu ideário progressista, a sua beneficência (…) não colhi mais (e tanto foi) que a irradiação espiritual e humana.”
Entrevistado no Museu Municipal de Aljustrel, em 19-11-2005, José Soares, membro da APEB, Associação Portuguesa de Emigrantes na Bélgica, assegurou: “Em relação ao Adeodato, ele marcou profundamente a vila de Aljustrel. O encorajamento de Francisco Rasquinho, Edmundo Silva… que se revelam anti-ditadura. Era um democrata profundo. A luta foi inspirada no exemplo do Adeodato. Verdadeiramente, as pessoas saíram do nível cultural que havia. Quando o Adeodato propôs a fundação do jornal “Círculo” e lhe perguntaram: “Quem vai escrever?” e ele respondeu “Somos nós todos!”
O Brito Camacho era quem dominava culturalmente. O Adeodato Barreto influenciou a vontade de ir mais longe…Este amor pela literatura que transmiti aos meus filhos, provavelmente eu recebi dessa gente!...”
Francisco da Palma Colaço, presidente da Junta de Freguesia de Aljustrel, abordado na mesma ocasião, declarou: “Fui marcado pela presença de Adeodato, quando ao entrar na casa de um primo - eu comecei a frequentar a casa muito novo - vi pela primeira vez um retrato, em que o Adeodato está com um turbante. Chamou-me sempre a atenção aquela fotografia, uma ampliação que o meu primo tinha na sala de jantar. E eu pensei inicialmente se seria alguém da família. Mas suscitava algum mistério, por causa do turbante. Depois, pouco a pouco, fui sabendo o significado da fotografia, da personagem. Para as pessoas daqui ele era um Santo Laico. (…) Considero-me devedor da sabedoria que o Adeodato partilhou com a gente desta terra.”
Em conversa posterior, o autarca salientou que os discípulos das aulas de esperanto “foi tudo pessoas que passaram pelas masmorras do Aljube, Caxias, e até um esteve no Tarrafal, o João Gil. Estive a reflectir sobre isso, e é espantosa a influência que ele teve nesta geração, que lutou contra o regime e sofreu as agruras.”
“A convivência com as gentes da terra, na sua qualidade de notário - escreve Olavo Rasquinho - levou-o a integrar-se rapidamente na vida quotidiana. Eram frequentes as tertúlias com os seus novos amigos, como o Edmundo Silva, o Francisco Rasquinho, o João Eugénio, o Salgueiro dos Santos e tantos outros que tiveram o privilégio de com ele conviverem (…) Adeodato tornou-se profundamente solidário com as gentes de Aljustrel. Ministrou um curso gratuito de Esperanto no Clube Aljustrelense, que foi a origem de um fluorescente movimento esperantista que se traduziu numa intensa troca de correspondência e de revistas entre Portugal e os mais diversos países.”
Notário na vila mineira, no início da década de 30 do século passado, Adeodato cativou a população operária da mina e a juventude, pelo seu altruísmo, nomeadamente na alfabetização dos homens toupeiras, na edição do jornal “Círculo”, na participação associativa, na ajuda aos pobres, criando uma sopa para os desvalidos em tempo de recessão e fome e na difusão do esperanto entre os mais novos. Adeodato, considerava o esperanto “um instrumento vital para a unificação espiritual dos povos, que tem sido através da História o sonho de tantas almas generosas: unidade pela concórdia, e não pela absorção.”
No ensaio “Sobre a Mística em Política”, Adeodato escreve: “A política corporiza a expressão das mais profundas tendências altruístas da personalidade. É nela que o homem mais totalmente se dá aos outros e se esquece de si. (…) A verdadeira política deve dirigir-se às almas e não a algarismos. (…) A política sem alma, política que seja apenas uma técnica, cria a impassibilidade e a desolação à sua volta. (…) O povo só pode ser idealista pelo sentimento. É necessário que a alma revolucionária acorde nele para fazer dele outro homem. Uma política de simples inteligência o “geito frio, geométrico, sem alma” somente conseguirão fazer dele um tirano cheio de apetites ou um escravo submisso e resignado…”
Em “Civilização Hindu”, o filósofo diz que “Enquanto se não generalizar pela educação a ideia de que o verdadeiro progresso é a aquisição do predomínio da vontade esclarecida e do equilíbrio da Razão, não há solução possível para os angustiosos problemas modernos. (…) As diferenças são matizes que embelezam e enriquecem a existência social. A uniformização é a monotonia, a morte. (…) É necessário que nos habituemos a ver mais o que nos aproxima do que o que nos separa do nosso semelhante.”
Por ter apresentado ideias avançadas para o seu tempo, Adeodato foi perseguido, porque tudo o que parecia diferente do estabelecido era considerado comunista.
MORTE E SEMENTE
Adeodato faleceu em Coimbra, no sanatório dos Covões, a 6 de Agosto de 1937, com 32 anos, da mesma doença que vitimara Júlio Dinis, Cesário Verde e António Nobre - a tuberculose, cujo tratamento para a sua cura seria implementado quinze anos depois, na sequência da descoberta da estreptomicina.
Os mineiros de Aljustrel e os amigos reuniram economias para auxiliar a viúva e os órfãos. A notícia foi dada na Holanda e noutros sítios do planeta, por via da rede esperantista. O jornal “República” do dia seguinte escreveu que ele era “uma das inteligências mais fulgurantes da sua geração” e que “deixa um amigo em cada conhecido”.
A sua obra - póstuma - encontra-se reunida no volume “O Livro da Vida”, que a família e a Hugin reeditaram em 2000, e cujo lançamento ocorreu perante o auditório da Rádio Difusão Portuguesa, em Lisboa, repleto.
Kalidás Barreto, fundador e ex-dirigente da CGTP-IN e deputado da Constituinte, é filho deste homem fascinante, modelo de tolerância e humanismo, de encontro feliz com o Outro, que estabeleceu, pela inteligência e sensibilidade, uma ponte cultural entre a Índia e Portugal. São dele estas palavras, proferidas durante a evocação do centenário do nascimento de seu pai, que a Casa de Goa realizou em 18 de Novembro de 2005:
“Despertou a juventude de Goa, Coimbra e Aljustrel. Desconhecido, ignorado ao longo de meio século. Cantor da Índia mística. Adeodato Barreto é o cantor de língua portuguesa de conciliação entre o Oriente e o Ocidente.”
Sindicalista e associativista, Kalidás envolveu - se em causas sociais nobres, lutando por uma terra mais justa. O que lhe valeu, a exemplo do que sucedeu com o pai, a perseguição da Polícia Política de Salazar.
Em 1 de Dezembro de 1974, segundo testemunho de Francisco Colaço, foi descerrada em Aljustrel uma placa toponímica, na inauguração da rua com o nome de Adeodato Barreto, tendo proferido um discurso, o velho amigo do homenageado, Edmundo Silva. Ainda hoje, em Aljustrel, há quem se considere devedor dos ensinamentos daquele cidadão do Mundo, indiano de Margão, que em todo o lado, mas principalmente na vila mineira do Baixo Alentejo irradiou a luminosidade de um carácter que se destacou pela cultura humanista e pela partilha.
Nos artigos divulgados pela imprensa, nos opúsculos editados, na poesia difundida, o pensamento e a sensibilidade humanista de Adeodato Barreto constituem um legado impressionante. Pela sua obra perpassam valores como a justiça social, a conduta ética em política, a fraternidade, o amor à terra natal.
A obra deste notável pensador, porém, não se restringe à escrita. A atitude pedagógica, discreta mas interveniente, na fundação de jornais e associações, o seu envolvimento na difusão do esperanto, na alfabetização, no auxílio aos desfavorecidos e na contestação à prepotência, granjearam a admiração de muitos e a perseguição de alguns.
Face ao seu admirável e influente trajecto - tão breve! - Adeodato Barreto permanece como símbolo e expoente da cultura indo-portuguesa do século XX.
Há pessoas que transcendem a vida quotidiana. O caso de Adeodato é modelar. Em pouco mais de três décadas de existência irradiou um fervor e uma sabedoria que deixaram semente.
José Luís Pereira Jorge, no artigo “Adeodato Barreto, esse quase desconhecido”, assegura que: “A sua actividade foi multifacetada, fecunda e apaixonada, à imagem dos grandes homens da Renascença. Foi poeta, jornalista, pedagogo, filósofo, doutrinador, artista e filantropo.”
Para Orlando Costa "Poeta, pedagogo, polemista, mais arauto do que profeta, Adeodato Barreto conjuga a força da inspiração espontânea com o espírito de missão e a defesa inteligente de valores moais da liberdade e tolerância e do humanismo universal. Sinto-o, antes de mais e acima de tudo e simultaneamente como a voz arrebatada e nostálgica de uma identidade desterrada e de uma vitoriosa cidadania sem fronteiras."
Corroborando a antropóloga Sónia Frade, do Grupo de Trabalho Adeodato Barreto, criado no âmbito das actividades da Aldraba - Associação do Espaço e Património Popular, “uma obra imensa numa vida tão breve.” É aliás da autoria deste Grupo de Trabalho, a proposta enviada à Comissão de Toponímia de Lisboa, com a qual termino este artigo:
“PROPOSTA*
Considerando que Adeodato Barreto, cujo centenário do nascimento se comemora em 3 de Dezembro de 2005, foi uma figura ímpar na cultura portuguesa, tendo sido poeta, jornalista, pedagogo, filósofo, doutrinador, artista, filantropo;
Considerando que apesar da sua curta existência (32 anos), influenciou sobremaneira o pensamento do seu tempo, exercendo uma carreira exemplar de professor e notário, dirigindo jornais, fundando associações, instituindo cursos de alfabetização e de esperanto;
Considerando que a sua dinamização da língua universal, a par da sua intervenção cívica libertária e pacifista, são atitudes que merecem ser recordadas,
Considerando que este português do Oriente nasceu em Margão, no antigo estado de Goa, deixando no coração dos amigos das diversas terras por onde passou uma marca indelével, havendo ainda quem se defina como discípulo da sua sabedoria;
Temos a honra de propor que seja atribuída a uma rua da cidade de Lisboa o nome de Adeodato Barreto, perpetuando a sua mensagem de partilha de conhecimento e da tolerância entre povos, tão actual e premente no contexto do transnacionalismo dos nossos dias.
Lisboa, 18 de Julho de 2005
*Aprovada em reunião da Direcção da Aldraba - Associação do Espaço e Património Popular, e subscrita pelos proponentes”
Luís Filipe Maçarico**
** Membro do Grupo de Trabalho Adeodato Barreto, Antropólogo, poeta
BIBLIOGRAFIA:
LIVROS E ARTIGOS
AMARO, Luís (2005) “Para Lá da Névoa”, edições Caixotim.
BARRETO, Adeodato (1934) “Sobre a Mística em Política”, Aljustrel, Setembro, 14 pp. dactilografadas.
BARRETO, Adeodato (2000) “O Livro da Vida”, Hugin, Lisboa.
COSTA, Orlando (2000) “Indianidade, Solidariedade, Liberdade”, in “O Livro da Vida”.
FONSECA, Maria Inês Pinto (2004) “Levávamos Logo a Foice P’ra Mina” Identidades e Memórias dos Mineiros de Aljustrel, Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, tese de doutoramento.
JORGE, José Luís Pereira (1996) “Adeodato Barreto, Esse Quase Desconhecido”, in “Lucerna”, Leiria, Boletim da Associação dos Antigos Alunos da Escola Domingos Sequeira, nº 18.
MIRANDA, Lúcio de (1940) “Adeodato Barreto (Ensaio Biográfico e Crítico)”, Bastorá, Tipografia Rangel.
RASQUINHO, Francisco (1976) “Filhos de Aljustrel”, edição de autor, Lisboa.
FONTES ORAIS
Conversas com Francisco Colaço, Kalidás Barreto, José Soares e Olavo Rasquinho.
JORNAIS
"Círculo”, Todos os números (7), de 18-6-1934 a 26-8-1934.
“República”, 7 de Agosto de 1937.
WEBGRAFIA
http://aaldraba.blogspot.com
http://ciberduvidas.sapo.pt/antologia/souza.html
http://www.rtp.pt/index.php?article=208388&visual=16
http://www.goacom.com/casa-de-goa/boletimSetOut2003.html
Fotografias:
Adeodato Barreto (gentilmente cedida por Kalidás Barreto)
Tagore (recolhida na Net)
Grupo Coral dos Mineiros de Aljustrel(LFM)
Olavo Rasquinho, filho de um discípulo de Adeodato, junto à fotografia de seu avô no Museu Municipal de Aljustrel(LFM)
2 comentários:
É muita areia para a minha camioneta.
Ihihihih...
Gostaria de poder.
Pois confesso a minha total igorância.
Obrigada por me ter permitido conhecer.
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