"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, maio 16, 2005

A Vida de Contrabandista


Acabei de receber, escrito a lápis, um depoimento de M.J. acerca da sua experiência de contrabandista, nos anos 50-60 de miséria que este povo sofreu.
O relato tem por cenário Monsanto, a tal aldeia que os antónios ferros e os salazares pretendiam de "Mais Portuguesa", mas que ocultava, por detrás do granito, dramas familiares como o desta testemunha. Mantive a ortografia e partilho na sua totalidade o documento, que é uma pulsação de vida, um retrato, um libelo:
"A vida de contrabandista é muito dura, sou duma piquena aldeia da Beira Interior; e como sou a filha mais velha e os meus pais eram muito pobres, eu ia quase sempre com o meu pai levar o contrabando a Espanha que era café ensacado em sacos de 30 ou 50 kg fazíamos a viagem sempre de noite às vezes durante o Inverno saímos da nossa terra mais cedo saíamos por volta das 20 horas que já era de noite e chegávamos a Celeiros por volta das 11 horas e por volta das 5 horas da manhã já estávamos em casa de volta, levávamos cerca de 150 kg de café em cada carga, o meu pai tinha um macho e um burro então fazíamos assim até ao rio Erges fazíamos o percurso juntos por aquelas serras cheias de mato atravessámos o rio sempre pelas partes mais baichas e com muito cuidado já que naquela zona era preciso muito cuidado com a nossa guarda fiscal, e com os cravineiros da outra margem do rio a partir daí íamos separados eu ia sempre na frente que caso aparecessem os cravineiros a mim eles não faziam mal ainda me encontrei duas vezes com eles na viagem de regresso mas não me tiraram nada e uma das vezes fartei-me de chorar pois trazia os alforjes cheios de coisas para vender na minha terra tínhamos sempre muitas encomendas. Já o meu pai ainda dormiu uma noite no xilindró em Espanha porque na viagem trazíamos muita coisa, trazíamos muito tabaco, pão espanhol que tinha muita procura na nossa terra, trazíamos roupa sapatos espanhóis que também tinham muita procura, rebuçados chocolates caramelos cacau em pó que era uma delícia loiça de pirex que era moda naquela cultura que comprávamos lá nas cantinas por poucas pesetas e vendíamos lá na nossa terra com algum ganho o que dava menos lucro era o pão mas tínhamos sempre muitas encomendas, eu às vezes zangava-me com o meu pai e pedia-lhe para não o trazer porque ocupava muito espaço na carga mas o meu pai dizia que o pão era para tapar a fome por isso trazíamos sempre as encomendas e como naquele tempo não havia farmácia lá na nossa terra até trazíamos remédios, pomadas para as dores, vitaminas, serugumil, óleo de fígado de bacalhau, pinturas, cintas e até lingerie para algumas senhoras da aldeia que viviam mais abastadas."
O estudo do contrabando, aparte alguns contributos locais, está por fazer. Em Santana de Cambas, Mértola, ainda há pessoas, de muita idade, que não querem falar no assunto. Segundo Santiago Macias, a escassez de investigações acerca daquela actividade ilícita, secreta e por conseguinte geradora de constrangimentos, prende-se com a estigmatização a que estavam sujeitos socialmente os indivíduos que a praticavam. A memória do contrabando permanece ainda como motivo de vergonha para alguns dos intervenientes.
(Fotografia de Vanda Oliveira, de navalhas utilizadas por um barbeiro de Tourém, Montalegre, que para arranjar proventos suplementares, face a uma família numerosa, além da agricultura e da feitura de cestos, também fez contrabando naquela parte da raia transmontana.) Posted by Hello

3 comentários:

MonteMaior disse...

Gosto muito deste blog e sobretudo gostei bastante deste post. Parabéns!

j.c.pereira disse...

É preciso guardar as memórias.Todas.Para que continuemos a respirar como povo.
um abraço
JCPereira

Anónimo disse...

Já não abunda quem conte as façanhas do "arco-da-velha" de quem tinha de enfrentar as travessias da ribeira da Baságueda e do rio Erges para procurar o pão de cada dia na outra banda.
Vale a pena ir ouvir os contadores de estórias de memórias desses tempos, testemunhos vivos das nossas terras raianas.
Eduardo Serra