Nos últimos dias, escrevi a dois poetas. Um, é da minha geração, escreve magistralmente e chama-se Eufrázio Filipe. Foi presidente da Câmara Municipal do Seixal durante vários mandatos, continua a ser poeta - lembro-o recebendo como eu, o testemunho de mestres como Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira e Armindo Rodrigues. Foi numa Festa do PCP no então designado Pavilhão dos Desportos, em Lisboa. A festa chamava-se "De Braço Dado" e quem me levou até àquele palco, foi o saudoso Mário Castrim.
"Amigo: Desculpa-me a ignorância, mas tens algum livro recente?
Lembro-me de ti, naquela magífica festa "De Braço Dado" no Pavilhão Carlos Lopes, que no final dos anos 70 ainda era Pavilhão dos Desportos...
Depois soube de ti pelas notícias que chegavam do Seixal, dos prodígios que foram realizados, o sonho (ou a Poesia) em movimento podia ter sido (bem, não sei se foi) o slogan desses dias certamente inesquecíveis...
Este poema tem uma beleza, uma energia, uma tecelagem de ondas e remos, de voo e silêncio, uma musicalidade de sílabas e anseios, que as palavras são muito pouco para dizerem essa magia, a forma como partilhas...Bem Hajas, Companheiro!"
Não resisto a divulgar o poema que Eufrázio Filipe tem no seu blogue MAR ARÁVEL:
A RASAR O VENTO
"Ainda não chovia
da ultima vez que raptei
o sinal que trazias nos olhos
Consentiste que fosse o ladrão
do teu olhar
mas tive que rasgar uma janela
por sobre as águas
Estavas num barco
caiado de branco
com palavras a arder
e eu perguntei-me
que fazer deste lume?
Aproximei-me e vi claramente
uma balsa sublimada
a rasar o vento
onde me transporto."
onde me transporto."
O outro poeta a quem escrevi, fez 19 anos no mês passado, usa a palavra no palco (é actor), canta o fado e também escreve poemas, embora ainda não tenha nenhum livro publicado.
Contudo, naquela idade, a poesia ainda traz a marca de influências várias. Por isso, escrevi-lhe estas palavras de estímulo:
"Bom dia, meu amigo:
Há muito que te digo que aquilo que escreves denota muita sensibilidade, uma alma poética, o virtuosismo inerente a quem desde muito novo sente uma natural vocação, que a vida e as vivências estimularam.
Li atentamente os teus textos, leio-os sempre regalado, deliciado, comentando: "Este rapaz tem arte!"
Mas o saber fazer, sendo essencial, não é decisivo.
O Mundo em que vivemos é competitivo, a criatividade renova-se, há uma constante fome de renovação.
Quero dizer com isto, que é necessário um segundo - importantíssimo - passo.
Criar, descobrir, a partir do que sabes fazer, do que bebeste de influências, a tua vereda singular.
Dizer o mesmo com outras formas, outras rimas, que não façam lembrar ninguém, que surpreendam.
Porque tu tens um percurso inconfundível.
Na poesia há esta exigência permanente.
Há dias descobri num site uma crítica à minha poesia, por parte de um anónimo, que escreveu: "Muito eugeniano." De facto, ninguém nasce sozinho. Mas há que caminhar num sentido mais nosso, com as influências todas que pudermos absorver. Não chega ser espontâneo, habilidoso, eficaz.
As palavras obrigam a uma luta incansável, para descobrir a maior intensidade e a melhor forma, para a mensagem chegar ao leitor com a carga necessária que o faça reflectir acerca desta passagem na Terra.
Vivendo neste tempo, a preocupação social, sobre as injustiças que nos rodeiam, torna-se um devir do poeta que não pode cingir-se, - sob pena de passar despercebido, - ao seu sofrimento amoroso, ao seu umbigo...
Seria muito injusto da minha parte incensar-te, sabendo que devo pedir-te mais.
Escrever bonitas rimas e textos românticos e dramáticos, que se ajustam a fados é um estilo, que remete para o século XIX... escrever depois de Ary, O'Neill, Eugénio, Sophia e tantos outros é o desafio.
Por favor tenta ler "O Poeta Faz-se Aos Dez Anos", de Maria Alberta Menères e perceberás melhor porque te digo isto tudo.
E perdoa por não ser efusivo e não te empurrar com coroas de louro para o abismo.
Acho que o meu papel, aliás, deve ser este: ser exigente, para que possas um dia seres melhor e seres tu. É claro que é uma opinião, entre muitas.
Perdoa a minha sinceridade, mas considero que não seria um amigo se, para ficar bem visto, calasse esta opinião, que pretendo construtiva, caso queiras fazer da Poesia uma das tuas janelas de respiração.
Com o abraço do amigo
LFM"
Transcrevo igualmente um texto, em prosa, que me foi enviado por este jovem amigo, de quem ouviremos falar mais, para lá do que já se fala, pois em "Piratada à Portuguesa", actuou ao lado de Carlos Cunha e Marina Mota, entre outros, dando boa réplica.
O nome: Flávio Gil.
PARDAIS DO OUTONO
"Levanto o olhar concentrado da página cinzenta do jornal onde o havia mergulhado e predisponho-me, por um instante, a olhar para o que me rodeia com uma atenção especial que veja para lá braços cansados que se arrastam no regresso a casa e encontre, descubra a harmonia do verde amarelado do quase Outono a beijar o azul do Céu que, agora, se enegrece mais cedo, enquanto sorrio à Lua precoce que surge no lugar do Sol do meio-dia que já passou!
Nos relvados em volta da esplanada onde estou, ainda há bancos que acolhem a idade que ali vai depositar histórias de uma vida inteira, em cada entardecer. Agora, neste fim de tarde de Sol e Lua, já há miúdos, no jardim… Uns, atravessam o jardim a correr até ao carro onde os espera o abraço mais terno que conhecem. Outros, ficam… e então, é vê-los crescer: num chuto, numa corrida, num grito que se repete e faz lembrar os pardais que anunciam as manhãs da Primavera! Mas é Outono, agora! São os pardais do Outono, que anunciam a vida!
Antes de voltar ao lugar preto e cinza, onde leio o mundo inteiro, em apenas alguns minutos, levanto mais o olhar… mais alto, mais longe!
Cedo a minha mesa à senhora que acaba de chegar e corro à procura do sentimento que me agita a memória!
Ainda não deixei este lugar e já me sinto noutro sítio, com mais cores, mais ruídos, mais coisas para descobrir… O mundo inteiro, não para ler, mas para descobrir!
Dou por mim, a sonhar… de olhos abertos, a sonhar! A sonhar com os dias em que saía de casa da avó a correr, na pressa de ser o primeiro a chegar à escola! Queria ser o primeiro, mesmo sabendo que não havia uma recompensa pela minha proeza! Mas eu não queria nada… Só queria tudo!
Queria ser um dos outros para juntos, corrermos, escondermo-nos, ganharmos, perdermos, brincarmos, brigarmos, chorarmos e rirmos… tanto! Rirmos tanto! E sorrirmos…
Era a magia do recreio… daquele momento em que cada um de nós era o que desejasse: um herói, um vilão, um cantor, um pai, ou uma mãe, um polícia, um bombeiro…
Um, dois, três, não salva ninguém!
A campainha anunciava o final da fantasia! Voltávamos à monotonia da sala de aula… à disciplina, ao rigor… ao sossego!
Voltávamos… mas a sorrir!
A sorrir, porque no dia seguinte, íamos desenhar o mundo outra vez… não lê-lo, mas desenhá-lo… este ou outro mundo, outra e outra vez!
Com outras personagens, outros protagonistas, outro argumento…
Era naquele lugar, que agora só existe na minha memória, que sonhávamos…
Agora, temos objectivos! Objectivos que umas vezes cumprimos e, outras, nem tanto!
Mas era tão bom, quando, no lugar dos objectivos, palavra que só dizemos depois de adultos, havia sonhos…
Era tão bom, viver no lugar dos sonhos! Dos sonhos que nos faziam sorrir, sendo apenas sonhos…
E, agora, sorrimos tão pouco!
Era tão bom viver, de novo, lugar dos sonhos!
Ser um pardal do Outono, anunciando a vida!!!"
Flávio Gil
Fotografia e Introdução aos textos: Luís Filipe Maçarico
2 comentários:
Veja só a minha ignorância, não conhecia nenhum dos dois. E de ambos gostei, mas me impressionei pela maneira como escreve o jovem, já que pela idade não é tão corrente assim que alguém escreva tão bem. Ou se calhar é e eu já não me lembro.
Um abraço
Acompanho o mar arável mas ainda não tinha ido lá ler este trabalho. Agora já fui.
O Flávio não conhecia mas tenho tempo contando os dezanove anitos e o potencial que descreves porque acreditas.
Obrigada pela divulgação das palavras deles.
Jingã
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