"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

domingo, março 15, 2009

MATANÇA DO PORCO: UMA TRADIÇÃO DIFÍCIL DE EXTINGUIR COM DECRETOS E POLÍCIAS


Foi num lugar de nuvens rasteiras, grávidas de chuva em Fevereiro, que é terra de lumes, mal a Primavera desabrocha. No sábado gordo, um grupo de citadinos, partiu para um convívio gastronómico no sul, cujo pretexto era a matança do porco.

A matação tradicional no Alentejo é referida por inúmeros autores, que sublinham o facto de ser uma festa íntima de família e amigos.

Leite de Vasconcellos, no volume V da Etnografia Portuguesa, afirma que “deve escolher-se o quarto crescente, para a carne crescer na panela.”

Joaquim Pulga, escreve em “Alentejanando Estórias e Sabores”, que é “velha como o passado, esta tradição alentejana de matar o bacorinho preto. Matança que assegurava a mantença.”

“O porco quando está vivo suscita a antipatia, quando está morto convida ao prazer”, assegura Alfredo Saramago em “Para uma História da Alimentação no Alentejo”.

E João Mário Caldeira na sua obra “Margem Esquerda do Guadiana As Gentes, A Terra, Os Bichos”, recorda que o ritual teve “direito a figurar até na ilustração, executada entre 1518 e 1535, do Livro de Horas do Rei Dom Manuel”. Caldeira diz que a matança é “imolação em prol da subsistência do homem”

Joaquim Pulga informa que “Cabia aos homens o sacrifício, o musgar e o lavar, o desmanchar do animal e o separar das peças grandes. As mulheres tinham de cor a sua labuta, aparar o sangue, lavar e preparar as tripas, fazer os torresmos e a banha mais a tarefa incontornável de tratar das comedias para o afago dos estômagos. Migar a carne do alguidar, temperar e fazer os enchidos eram tarefas também suas.”

Em “Memórias e Narrativas Alentejanas”, Brito Camacho lembra: “Engordam-se porcos desde que o mundo é mundo, e nunca se engordaram senão para se comerem”. Segundo este autor, “Ao primeiro golpe, havia sempre quem dissesse na roda: - Se queres conhecer o teu corpo abre um porco”.

Costa Caldas em “A Tradição” informa: “Do sangue, temos os chouriços d’esse nome. Da carne, temos os chouriços, paios, linguiça, salsichas, não falando nos assados de lombo, perna e costoletas. Das mãos e pernas, o presunto e o fiambre. (…) Da cabeça, os miolos com ovos; a orelheira (…) a língua é manjar saborosíssimo. Do interior, os rins (…) coração e fígado que com o sangue, dá (…) a surraburra do Alentejo; as tripas para o enchido; as banhas (…) o toicinho.”

Aníbal Falcato Alves registou em “Os Comeres dos Ganhões Memórias de Outros Sabores” este depoimento: “No dia da desmanchação (…) tirava-se o entrecosto, metia-se tudo no pimentão”

O jornalista Pedro Ferro escreveu: “O porco morre ao amanhecer. Três ou quatro homens arrastam o bicho que protesta e seguram-no sobre uma banca de madeira - a sua ara sacrificial. (…) Esforceja. Debate-se. Desesperadamente grunhe. (…) Cerimónia complexa é esta da matança. De véspera fica o animal sem comer. De véspera atarefa-se o mulherio na preparação dos alguidares que hão-de receber as vísceras e o sangue (…) o porco é chamuscado: queimam-lhe o pêlo com braçadas de tojos (…) Bocado a bocado o bicho vai para o alguidar.” (in “Errância pelos Comeres do Alentejo Onde o Pão sabe a Sol”, Imenso Sul, Nº 15, Verão 98).

Partilhado por cerca de quarenta pessoas, contactadas com recato para evitar intrusos, o cerimonial foi intenso.
À roda da mesa conviveu-se e saboreou-se. Provaram-se vinhos únicos. O porco pesava 70 quilos. “Já pouca gente sabe fazer a moleja”, alguém lamentou.
E houve um arroz confeccionado com mão de mestra, queijo fresco, caldo verde e doces que a aguardente caseira ajudou a digerir.
Passeou-se, para conhecer melhor uma realidade que raramente chega aos telejornais, ávidos por drama, porque este lugar é longe e sangue…só o da matança do porco!
A alegria reinou nesta convivência e o regresso aos meios urbanos fez-se com boas lembranças.
Afinal, ainda há gente que resiste, mantendo a tradição, da mesma maneira que todos os anos pinta as aldeias com cal ou apanha a cortiça e a azeitona.

Luís Filipe Maçarico*
*O texto foi escrito em Fevereiro de 2008 e publicado no Jornal "Conversas de Café". A fotografia foi registada hoje, no mesmo local

1 comentário:

MonteMaior disse...

Há sempre alguém que resiste.
Há sempre alguém que diz não.

Que assim seja!