A MANHÃ
Este claro dia retira às coisas o lado
espectral da sombra e interrompe o mistério.
A esta hora límpida não se vêem as dores
e o sol ofusca as fendas e as feridas,
como invisível e súbita cura.Tudo é limpo
e iluminado, esquecido o véu da matéria
e o traço irregular das formas. O hábito
da luz adormece a morte e torna supérfluo
o apelo aos deuses. São as coisas, por um
breve segundo, apenas brilho, clarão, saúde,
ausência de enigma, construídas pelo olhar,
vivas ao toque das mãos, macias, únicas,
sem defeito ou origem. A este claro fulgor
a fictícia aparência submerge o tempo.
A CASA – IV
Agora que parto, a casa muda. Seca-se
o vento na respiração dos meus braços,
a poeira da água oculta os reflexos.
Cessado o ruído dos olhos, a noite
endurece. Não há paisagem na dor,
treme o raro peso da calma, balanço
da partida. Sobre o sentir se celebra
o ofício de ter a vida existido.
Mudou o mundo. Ficou o tempo sendo
menos nada, menos eterno ou mais íntimo
da casa, menos intemerato o temor,
o susto de ser. Quando, de além das paredes,
vem o cortejo das sombras, a sombra avança,
lento lábio mudo da extinta luz.
2 poemas do livro "Decomposição-A Casa"(1992), de
Orlando Neves, poeta nascido em Portalegre, em 11 de Setembro de 1935 e falecido ontem.
(fotografia de Vanda Oliveira)
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