-“Andou no contrabando?”
-“Andei, andei! Às vezes fugíamos, com medo uns dos outros…”
(O primo deste senhor, Feliciano Marcelino Teixeira, que assistia à conversa, foi comentando situações das quais teve conhecimento através de conversas do próprio José Raposo.
FMT- “Iam para além, que a Espanha é para além, mas não saíam para além, tinham que sair aqui para a vila, para dar as curvas, para passar lá para ao pé do rio… Andavam debaixo de chuva… Quando tinhas de passar a ribeira a banho, passar agarrados a uma corda!”
JR- “A banho! Oh quantas vezes!”
FMT- “Depois todos molhados, não podiam fazer fogo, porque o fogo era um ameseador…
Às vezes, que não eram saídas, chama-se o espanto, agarrar o medo a qualquer coisa -fugiam…um para um lado, outro para outro, vai-se a ver, não era nada! Essa coisa do calçado não prestar… e depois andavam já descalços. Porque eram umas alpergatas para não fazer barulho…
JR- “Chegámos a andar 4 noites… 4 noites! Com uma carga às costas e às vezes chegávamos além e perdíamos as cargas e não ganhávamos um tostão! Uma vez tínhamos as cargas agachadas ali no barranco, vínhamos além, encontrámos dois que iam para lá, foram ter com a guarda fiscal que tava ali, deram ameseio, amarrei a carga e pûs uma pedra, vieram, eles passaram por cima da pedra e nunca viram a carga, eu fui buscá-la e a minha mãe que Deus tem deitou-a dentro dum alguidar e mesmo dentro do alguidar veio aqui a guarda, mesmo assim levou-a… E outros perdiam a carga e outros roubavam uns aos outros…”
FMT- “E por exemplo, a fome que passavam, que abalavam daqui com pouco comer, tu chegaste a dizer que chegavas à ribeira já tinhas acabado o pão…”
JR- “E cada um fugia para seu lado…agachávamos as cargas e não sabíamos onde é que elas estavam (…) Pelos caminhos não se podia ir…”
FMT- “Havia cheiros como aquele do Malpique…”
JR- “Se houvesse mato como há hoje, já éramos capazes de passar…[1]” “Fomos a deixar a carga debaixo de um xeragaço, a minha era de tabaco, eu tive muita saída, nunca perdi carga nenhuma…”
FMT- “Cargas de 50 quilos às costas…”
JR- “Chovendo que era uma lástima, foi o que arrebentou com a gente todos!”
“E o contrabandista dos Fernandes que a Guarda assassinou, como foi?
JR- “Foi um irmão meu, ali no Moinho das Juntas, levou um tiro na cabeça. Foi um dos nossos guardas, os nossos eram piores que os outros![2]Mataram muitos! Então houve aí um, filho dum cabrão! Que matou três. (repete que ali mataram 3 e acrescenta “morreram muitos afogados!”) O cabrão ainda deu um tiro num homem de Moreanes. Apanhavam a gente e davam-nos porrada![3] Alguns iam para a cadeia, estavam lá meses, em Beja. Eu fui lá também… A Guarda levou-nos à frente dos cavalos até á Mina…Fui para a tropa…fui para um pelotão desse sargento que nos prendeu…ficou mê amigo! Um moço dos Picoitos, deram-lhe um tiro no ombro, o Tó Lourenço! Mas isso foram os carabineiros. Os nossos eram piores que os espanhóis. Sabe o que os nossos faziam? Apanhavam os espanhóis (que fugiam da guerra civil) e levavam-nos para Sanlúcar e à noite os guardas espanhóis descarregavam as balas e matavam-nos[4]
Metíamo-nos nos barrancos todos molhados, não podíamos fumar… Íamos do Granado para lá muito ainda. E tínhamos então um sítio muito longe, pois fica para este lado de Vila Real, era tudo assim. Entregávamos (as cargas) aos espanhóis. Mas havia gajos ameseiros que mamavam aquilo tudo…
A gente era novo, mas estamos pagando agora. Então têm morrido muitos por causa disso, apanharam reumático…”
(depoimento de José Teixeira Raposo, Fernandes, 81 anos)
[1] José Raposo, durante esta entrevista, efectuada nos Fernandes em 28-5-2004, referiu uma incursão de 60 homens, numa noite de lua, talvez a saída de dezenas de homens que Ti Chico Neto também relatou no seu depoimento…
[2] O informante distingue-se dos restantes entrevistados, acusando a Guarda-Fiscal de ser pior que as autoridades fronteiriças espanholas. Compreende-se, face ao que aconteceu ao irmão. José Raposo ficou indelevelmente marcado pelo assassinato do familiar.
[3] Este comportamento dos guardas fronteiriços, segundo a maioria dos entrevistados e até em bibliografia consultada, era apanágio dos Carabineiros.
[4] Talvez esteja aqui, nesta notícia da conivência dos guardas, a razão da aversão do informante, várias vezes repetida, à Guarda-Fiscal.
Entrevista e fotografia de Luís Filipe Maçarico. Este texto integra a obra "Memórias do Contrabando em Santana de Cambas. Um Contributo para o seu Estudo", editada pela Câmara Municipal de Mértola e pela Junta de Freguesia de Santana de Cambas, cujo lançamento está previsto para Dezembro de 2005.
5 comentários:
beijo. e obrigado "irmão" :)
boa noite meu querido...bjinhos.
Abraço, amigo.
Esperemos que, desta vez, não haja mais adiamentos.
parabéns pela recolha. Recuperar esta pequena história das vidas nonperíodo fascista é muito importante.Bj de luz
Vamos lá POSTAR!
Luis, mais um trabalho genuino, com gente terra-a-terra... até arrepia! A verdade conta-se pelos protagonistas reais, procurada por pessoas sensíveis e sábias!
Parabéns!
Paula Silva
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