"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

domingo, outubro 24, 2010

Lançamento de "Marés da Minha Vida", de Abílio Duarte, hoje às 17h na Tasca do Careca


É lançado hoje, pelas 17 h, na Tasca do Careca, o livro de Abílio Duarte "Marés da Minha Vida", com design de Marta Barata.

Partilho convosco o prefácio que escrevi, para esse conjunto de poemas, seleccionados por mim e pela minha amiga e colega antropóloga Ana Isabel Carvalho:

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ELEMENTOS PARA UMA BIOGRAFIA DE ABÍLIO DUARTE -FADISTA, POETA E MAREANTE

Fui um Saltimbanco

Abílio Duarte nasceu em 28 de Novembro de 1937, na freguesia das Mercês, em Lisboa. O pai, natural de Setúbal “foi pescador e descarregador de peixe” e a mãe, originária da Madragoa, “vendia peixe”. “Em miúdo, conta este filho do mar, cheguei a estar aqui na Ribeira; apanhava baldes de água para lavar as tecas do peixe.” Criado entre a Bica, Madragoa, o Casal Ventoso e Chelas velho, Abílio Duarte é neto de um algarvio, pescador dos galeões (avô paterno) e de um serralheiro do Arsenal (avô materno).

Reformado da marinha mercante e tendo sido serralheiro de precisão de moldes para plástico e de cunhos e cortantes, Abílio assegura, com ironia: “O Salazar ensinou-me a ser comunista!”[1] Acerca do seu percurso profissional afirma: “Fui um saltimbanco, sempre entendi que trabalhar numa mesma casa era atrofiante.” Tendo viajado por todo o Mundo várias vezes, recorda: “América quase toda, uma parte do Brasil, uma parte de África, Ásia…Japão, a Itália toda e a Turquia. Só não fui à União Soviética!”

Abílio Duarte começou a escrever para fados, a partir de um episódio estimulante: “Em 1959, quando fui trabalhar para a Marinha Grande (estava ligado ao fado e trabalhava) foi quando acabei a tropa…queria casar e fui para a Marinha Grande…comecei a sentir a saudade do Fado, foi quando fiz a homenagem ao Alfredo Marceneiro. Tive a felicidade de cantar versos, em dueto, com o Alfredo Marceneiro na casa da Maria Teresa de Noronha, em Cascais. Era casado com a Julieta Reis[2]. Comecei a cantar, a primeira sextilha, que é dum fado do Marceneiro - “Natal do Prisioneiro” - quando canto a segunda, manda-me calar, improvisa o elogio que lhe estava a fazer, cantamos a seguir os dois. Foi dos momentos mais lindos, foi ter a felicidade de fazer um improviso com o Alfredo Marceneiro! A partir daí comecei a fazer algumas quadras (o marítimo é um homem sozinho).”

Das leituras dos diversos escritores que o enriqueceram, salienta António Aleixo, Carlos Conde, Ary dos Santos, Cesário Verde, Álvaro de Campos. “Fui apanhando bocadinhos aqui e acolá. O jornal “A Bola”, quando era trissemanário, à quinta-feira trazia um manancial de formação, feito por rapaziada de esquerda. O “Diário Popular”, ao sábado trazia cultura!...”

Escutámo-lo, longamente, desfiando um rosário de sombras. Com pudor, recolhemos os dados primordiais para esboçar o retrato. E quisemos saber como foi o tempo de ser criança: “A minha infância…pronto! Eu estava perto dos oito anos quando morreu a minha mãe. O meu pai tirou-me à minha mãe e fiquei a viver com a minha avó aqui na Baixa. Porrada foi mato e cara esfregada no colchão.

Estava a comer sopa de massa[3], o meu pai chamou-me: “Olha, a tua mãe morreu, a tua avó vai-te levar, quando lá chegares abraça a tua mãe.”[4]

As memórias doem, têm um sabor amargo: “Juventude, não tive! Não tinha relógio, cheguei sempre cedo ao trabalho. Levava a lancheira para o trabalho, dormia num vão de escada, na Calçada Salvador Correia de Sá, no nº 19, com a minha avó materna…”

Eu Não me Abstraía

Não obstante o fadista afirmar que a sua escrita não está sujeita a espartilhos formais, descortinámos a presença do jogo metafórico e encontrámos termos de origem mais erudita, que fazem evidenciar a puerilidade dos seus versos.

Sem sermos exaustivos, registámos, entre outros, os seguintes vocábulos que aparecem nos poemas de Abílio Duarte: “convénios, mausoléu, arquitectar, retórica, paralelo, autonomia, mareei, eclipsei-me, órbita, épico, boreal, translação, rotação, espoletas, belicismo, rubra, pertinaz, floração.”

A introdução destas palavras, numa parte substancial, ligadas às Ciências, denota uma panóplia de conhecimentos práticos, enquanto profissional da marinha mercante, certamente complementados com uma razoável cultura livresca, que sempre o impeliu a procurar saber mais.

Com um estilo próprio, misto de singeleza e sapiência, a poesia deste homem do povo, que encontrou as agruras da vida no alto mar, durante longas ausências da terra madrasta, reflecte como num espelho, algumas contrariedades.

O falecimento prematuro da mãe, a rudeza do pai, a pobreza em que viviam os desfavorecidos da sorte, esse contexto de dificuldades sobrepostas e sucessivas, marcou o seu percurso de ser humano e o despojamento de uma escrita, onde morte e desencanto espreitam.

Todavia, e teimosamente, no seu horizonte poético surge um jardim de sonhos, abordado com termos mais luminosos.

A Revolução de Abril, esperança dos deserdados, assume nos versos de Abílio Duarte o papel de paraíso, bálsamo, farol.

Depois da grande errância, o prazer de ter cantado pelo país, com Ary, Tordo e José Viana, artistas solidários, que ansiavam como ele um futuro mais fraterno, marcou uma fase exaltante da sua trajectória.

Abílio considera que “A vida nas oficinas, com os colegas serralheiros, que é a vanguarda da classe operária, foi essa vivência que me ensinou. Eu não me abstraía, eu agarrava tudo. E a vida do Bairro Alto também me ensinou. Casei com vinte e dois anos e ensinei a mulher, que tinha vinte e quatro, a pôr uma fralda, pela experiência que tive no Bairro Alto.”[5]

“A vida obrigou-me a ir para a luta”, confirma.

Abílio chegou aos setenta anos com a dignidade e candura dos sábios.

Associativista, ex-presidente da mesa da Assembleia Geral do Grupo Excursionista “Vai Tú”, da Bica e participativo, nas noites de fado das colectividades e da “Tasca do Careca”, continua a vender peixe ao lado da sua terceira mulher, no mercado de Campo de Ourique.

O sorriso, talvez o tenha trazido de longe, das mil andanças, e como os pescadores de pérolas, deslindando tesouros no fundo do oceano, assim desanuvia rosto e gestos…

Quando canta, cerra os olhos e a voz, rouca, desenha pegadas sofridas, ou celebra patuscadas bem regadas.

O quotidiano de um mareante tem altos e baixos, como as ondas do Mar. A vida de um poeta não é menos contrastante…

Os seus versos essenciais e profundos alojam o ferrete de diversas etapas da caminhada, adversas. E um ou outro instante de júbilo.

Por vontade de Mestre Abílio passam a ser património de todos. A sua fruição em livro é a melhor homenagem que podemos fazer a este homem - acompanhando-o nos passos que a existência lhe impôs.

Libertemo-lo do peso de um destino áspero, pois o afecto pode ser lenitivo, atiçando sílabas de contentamento.

Bem hajas, Poeta, pelo teu exemplo partilhado, por esta vontade de soltar a alma, que te fez transcender as amarras que apertam o barco ao cais, o marinheiro ao fadário e o sonho à ousadia de voar.

Lisboa, 14-1-2008, entre as 2 e as 3 da madrugada

17-1-2008, entre as 19h e as 19h e 55m

25-1-2008, entre as 12h e as 18h

Luís Filipe Maçarico

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[1] “O Salazar a mandar sobras para a Alemanha e a Espanha e a minha mãe morreu com 28 anos tuberculosa e os irmãos dela morreram com tuberculose” (depoimento em 9 de Agosto de 2007).

[2] Primeira mulher.

[3] “E a última refeição com a minha mãe foi massa guisada com carne…”

[4] Depoimento em 10 de Agosto de 2007.

[5] Ibidem.

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Fotografia de São Duarte, a quem agradeço, em nome dos Amigos de Abílio, o grande companheirismo, que tornou possível a concretização deste belo sonho que é "Marés da Minha Vida". Ou, como Álvaro Cunhal me escreveu em Novembro de 1995: "vale a pena sonhar, vale a pena ser poeta!"

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