Em Novembro de 2016, sete meses depois de
me ter mudado para Almada escrevi num rascunho, que não hesito em partilhar com
os leitores:
“Pelas ruas da velha Almada ouve-se ainda
na padaria, na mercearia, nos cafés, o sotaque dos que vieram do Alentejo há
décadas, mas nunca perderam a ligação às raízes.
Procuram-se o “panito”, os enchidos, os
ésses, os queijinhos, ou seja o sabor da terra que por vezes se retorna num fim
- de - semana alargado, buscando o sol do sul, a cal, os rostos tisnados dos
que permanecem nas entranhas dos lugares. Cheiros de ervas e de comidas.
Do sorriso às iguarias, a mercearia de
Joaquina Matos é um oásis, um bálsamo, um regresso ao paraíso.
A tranquilidade das palavras benfazejas
alegra o dia de canseiras e rotinas.
Vislumbram-se os montes, a sombra quente
do Alentejo, os aromas do campo e o desmedido silêncio que mitiga tanta
ausência e sede de fontes.
Almada tem esta parte que me cativa. E que
o cante exalta ali para os lados do Feijó, com homens que escrevem Futuro com
gargantas incendiadas de ternura. Porque o Alentejo é imenso e floresce nesta
margem de sabores e vozes que espalham luz na caminhada.”
Decorridos alguns anos, no inverno de
2019/2020, decidi entrevistar os donos da mercearia, que me habituei a
frequentar, e onde a vida flui, entre o fraterno cumprimento do senhor Matos e
o sorriso acolhedor da dona Joaquina. Falámos muito antes dos percalços que nos
obrigaram à forçada quarentena, face à pandemia global que paralisou o
quotidiano.
Adolescentes, conheceram-se num “balho” no
Dejebe. Ela, da Vendinha. Ele da cidade, ambos do concelho de Évora. Joaquina e
Eurico.
Há décadas em Almada, saíram do Alentejo
com o Professor Galopim de Carvalho. Eurico revela: “A gente chama-lhe
Carvalhinho”.
“Vim servir para a casa da Dona Isabel
(esposa de Galopim de Carvalho), conta Joaquina Matos e acrescenta:
“Conheci a dona Maria Isabel, ela era
professora da Vendinha (está uma estátua que lhe fizeram, lá). Ela estava
hospedada em casa dos mais ricos de Évora, os Calados. Ela gostava muito de ir
à lareira da minha mãe. Gostava muito de estar na minha casa.
Na escola, um dos meus manos que é o
Domingos Barradas (advogado) era muito esperto e a Dona Maria Isabel gostava
muito dele, foi sua madrinha.”
Tiveram várias ocupações até criarem esse
lugar de encontro e convívio que é a sua “mercearia fina”, como foi designada
pelas clientes, que fizeram uma bata com aquela frase à sua amiga Joaquina.
Naquele estabelecimento da Rua Capitão
Leitão encontramos pão alentejano de Évora e Vidigueira, chouriço de São
Manços, bolo de erva - doce, ésses e outras guloseimas de Safara, além do
precioso azeite de Moura.
O pai de Eurico (Mestre Matos) foi
alfaiate em Vila Viçosa e Évora.
Joaquina teve pai carteiro (Ti Mateus) que
distribuía o correio entre a Vendinha e Montoito.
As respectivas mães, com vários filhos
para criar, dedicavam-se ao trabalho doméstico.
O baile onde se conheceram há mais de meio
século, ocorreu durante a Festa de Santa Bárbara do Degebe. “Hoje já não se
fazem estas festas!” elucidam. Havia “muita gente mesmo” e a música “era com
harmónio”.
Algumas memórias estão esbatidas, outras
não são fáceis de revisitar. A vida de então era difícil por isso Eurico não se
contém “Era uma tristeza e a gente agora a lembrar-se disso…”
Há uma clientela permanente, oriunda do
Alentejo. Marianita da Amareleja, que ultrapassou os oitenta anos, mora em
frente e vem frequentemente, Nani de uma geração mais nova, nasceu no Redondo e
aqui se abastece. Nani vai trocando impressões com Ana da Mina de São Domingos
e duas Luísas, uma alentejana, outra do Ribatejo, presenças assíduas
interpelando o casal no seu quotidiano.
O então jovem Eurico foi estafeta numa
oficina da qual passou para electricista auto. Trabalhou numa corticeira
(Cutileiro Ferreira) a fazer rolhas com uma máquina. Antes disso, ainda menino
terá trabalhado de sol a sol “Era pequenininho a olhar para o céu a ver se o
sol se punha e o dia de trabalho acabava.”
“Ainda fui merceeiro na Travessa do Pão
Bolorento. Devia ter aí os meus doze anos…”
Joaquina recorre à memória da mana Ana
Rosa e enumera os sítios onde andaram à ceifa e à monda. “Andei a mondar grão e
na ceifa do arroz em Benavente, com as moças do meu tempo. Ficávamos lá a
dormir. Era bem novinha.”
Trabalharam no “Monte da Furada”, do conde
da Ervideira, Monte da Herdadinha, Monte do Cume, Monte do Outeiro (para o lado
de Reguengos). O Monte do Cume era da minha madrinha, ainda trabalhei dois anos
lá, depois fui para Évora para a fábrica das malhas. Daí fui para a fábrica dos
bolos, fazíamos amêndoas, rebuçados, caixinhas de bolachas, enlatávamos, era
uma confeitaria, era mesmo uma fábrica.”
Já em Almada, trabalhou à volta de quatro
anos na Electro-Hermes e, entre uns quinze a dezoito anos, na Ferrageira de
Almada. Dali veio para a mercearia, que já existia, a proprietária era a D.
Laura Fonseca.
Quanto a Eurico Matos, foi electricista em
Lisboa, trabalhou na Electrocentral Vulcanizadora, na “Guérin”, na “Renault”,
em Carcavelos, até que foi electricista - auto no departamento de manutenção
das oficinas da Câmara Municipal de Almada.
Umas semanas antes da mercearia
interromper a sua actividade, perguntei ao senhor Eurico a proveniência da sua
clientela tendo-me respondido assim: “Isto está rodeado de alentejanos. A maior
concentração é aqui e na Cova da Piedade. Depois aparecem estes casais novos.
Algarvios Também vêm. E galegos, galegagem”…
Se bem se lembram, aqueles que leram Alves
Redol, os gaibéus (ou o Povo Ratinho, de Adriano Pacheco) eram beirões, que
vinham das suas terras de origem trabalhar nos campos do sul, sendo preferidos
pelos agrários, por receberem um salário menor.
Ainda há quem veja os originários das
regiões acima do Tejo como “galegos”.
Trata-se de uma diferenciação étnica,
pelos costumes e pronúncias diversas das populações que nasceram, habitam ou se
reconhecem cultural e territorialmente com costumes e pertenças identitárias
diversas dos povos do sul.
Os alentejanos e particularmente a geração
de Joaquina e Eurico, que já estão na casa dos setenta, têm a sabedoria e a
sensibilidade de tratar todos os clientes da melhor forma, por isso muita gente
os procura como um dos últimos redutos do que há de mais genuíno neste país.
Luís
Filipe Maçarico (texto e fotografia)
Artigo publicado na revista nº 27 da "Aldraba", pp. 23-24.
2 comentários:
Que história linda! Adoro estas histórias com estes contornos pitorescos, mas tão verdadeiros!
Beijos e abraços
Sandra C.
bluestrass.blogspot.com
Um excelente texto que adorei. Um casal que apesar da sua deslocação mantém vivas as suas raízes.
Por aqui no Barreiro como deve saber a grande maioria da população ou é alentejana ou descendente de alentejanos. Segundo a história, inicialmente vieram os Algarvios, por ser uma vila piscatória. Nos séculos XIX e XX, vieram os alentejanos. Vieram inicialmente atrás da cortiça dos seus campos, que era tratada nas várias fábricas no Barreiro, depois com a industrialização deste pelo Alfredo da Silva, para trabalharem nas fábricas da CUF.
Paralelamente, vinham os "ratinhos" das Beiras, principalmente da Beira-Alta, para trabalharem nas duas Secas de Bacalhau, e muitos desses trabalhadores, terminada a safra tentavam a sorte nas quintas, nas fábricas de cortiça, na CUF. e por aqui se estabeleciam. Eu mesma, sou descendente desses beirões.
Abraço, saúde e viva o 1º de Maio
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