Maria de Lurdes Brás é uma alentejana do
litoral, mais exactamente do concelho de Santiago do Cacém, terra de Poetas
como Eduardo Olímpio e Domingos Carvalho, que canta Fado e escreve Poesia.
Costureira de Alfaiate de profissão,
quisemos descobrir a sua história de vida, que é bem interessante, pelos
obstáculos que superou, pelas alegrias que a voz e a mão, tecendo versos e
costurando fatos, lhe foram proporcionando.
Começou por nos contar que nasceu no
“Cercal do Alentejo. Na altura era aldeia. Na Rua Velha (é o nome pela qual é
conhecida).”
Acerca da infância no Alentejo recordou:
“Lembro-me de quando ia para a escola, e era mais pequena, antes de ir para a
escola, daquelas ribeiras que tínhamos de atravessar e dos invernos, em que
usávamos botas de borracha e havia gelo na estrada que parecia vidro e com as
botas partíamos o gelo e dos trabalhos do campo, os meus pais trabalhavam na
ceifa, na monda, o meu pai tirava cortiça, fazia limpeza das árvores. E uma
coisa interessante: a minha mãe lavava na ribeira e eu pescava.”
Com dez anos veio para Almada. “Ainda fiz
aqui a quarta classe”.
Maria de Lurdes conta como - e com quem -
aprendeu o ofício:
“Tive uma má professora e perdi o
interesse por estudar. O meu pai veio primeiro, a minha mãe mais tarde…
A minha madrinha fazia-me sempre vestidos
muito bonitos e eu queria ser costureira como a minha madrinha…Fui trabalhar
para alfaiate. No desemprego fiz o 6º ano e tirei um curso de computadores…”
A nossa entrevistada revela como a Poesia
surgiu no seu percurso.
“O meu interesse era precisamente por
causa do Cante Alentejano. Quando os trabalhadores vinham do campo, faziam
cante ao despique e uma palavra a rimar com a outra fez-me mentalizar que
aquilo tinha interesse. Nos livros da escola, procurava os versos. A minha musa
inspiradora era a Florbela Espanca.”
Lurdes refere também o poeta Afonso Lopes
Vieira e acrescenta: “Gostava muito de cantar e a minha mãe não queria…”
E o Fado, como nasceu no seu caminho?
“Quando era miúda, ouvia Fado na rádio. As
pessoas associavam o meu nome à Maria de Lurdes Resende. Na minha imaginação
ouvia-me a mim, a cantar na rádio.
A minha sensação de me ouvir a primeira
vez na rádio é assim um misto de sentimentos.
Como trabalhava no alfaiate, tinha um
colega que fazia parte do grupo de Variedades da Incrível [Almadense].
Mandaram-me um postal para ir aos ensaios. A minha mãe rasgou o postal, que foi
para o lixo. Em casa, era proibido falar nisso.”
A sua luta para poder cantar em público
foi tenaz, persistente. Só conseguiu ultrapassar as proibições depois de se
casar. A nossa interlocutora revive o momento decisivo: “Quando casei, fomos
passar o fim do ano ao Casino do Alvor onde estava o Carlos do Carmo a cantar.
Começou aí a minha liberdade”.
Entretanto, “Os primos do meu marido
abriram um restaurante. O “Solar Alentejano”. Reuniam para o petisco e todos
cantavam. Havia um senhor que dizia “Aquela senhora além, se cantasse um
fadinho, seria bem melhor.”
“Tá bem, eu sei bocadinhos…Eu cantava para
uma colega o Fado da Fernanda Maria “Não Passes com Ela à Minha Rua”…
Um dia, houve uma noite de Fados no
Pragal. Assim que entrámos, lá estava o nosso amigo…e pôs os braços no ar:
“Hoje é que você vai cantar a sério!”
Não sabia músicas do fado, os tons. Foram
logo chamar-me. Trauteei aí um bocadinho. Daí o lamiré. Os fados que sabia do
princípio ao fim. E um deles era o Fado do Sobreiro…[1]
Gostaram muito. Cantei outro, gostaram
muito e eu a querer saltar. Tive de cantar mais um ainda. No fim da noite, o
apresentador veio ter comigo e disse onde havia fados: Alto do Moinho e
Giramar, na Fonte da Telha. E todos os fins de semana, lá estava.
Um dia, apareceu um fadista que cantou o
Fado do Sobreiro (uma música por vezes é adaptada a várias letras). “Tenho de
aprender outro Fado…
Escrevia versos e não guardava, não ligava
importância…”
Uma patroa sugere que guarde. Pensou:
“Escrevo versos para cantar. Sempre impulsionada pelos outros”.
Questionada sobre quem foram os fadistas
que a marcaram, responde rapidamente: “Fernando Farinha e Fernanda Maria. Acho
que foi com o Fernando Farinha que aprendi a gostar de Fado. Pela pessoa que
era e maneira de cantar.”
A nossa artista alentejana conta no seu
curriculum com três discos: o 1º em 1997 – “Rigorosamente”. O 2º em 2005, “Meu
Fado Maior” e o 3º em 2009 “Com sentido (25 Anos de Fado)”. Maria de Lurdes
Brás escreveu dois livros: “Poesia Alinhavada” e “Lamiré Poético”.
“Nesta altura já vão aproximadamente 35
anos” diz esta almadense adoptiva que já viveu mais décadas na cidade da margem
sul, que na terra natal.
Fez-se escutar em “Muitas casas de Fado,
restaurantes, hotéis, colectividades de Lisboa, quase todas, Festa das
Colectividades e três anos nas Noites de Fado do Coliseu. Fui cantar à Academia
de Santo Amaro, o Paulo Vasco convidou-me. Tenho orgulho em ter sido madrinha
de Fado da Raquel Tavares. O relacionamento é bom, apesar de ela ter pouco
tempo. Conheci a Amália, Fernando Maurício, essa gente grande do Fado.”
Maria de Lurdes Brás foi madrinha da
Marcha da Charneca, com António Calvário: “Foi impressionante, em miúda via-o
como um galã. Convidaram-me para fazer a letra da Marcha - Homenagem a Laura
Alves. Quando me pedem alguma coisa, eu faço. As coisas na minha vida têm
acontecido assim. Na minha terra há um grupo de teatro. O José Luís Assunção
todos os anos faz uma revista, faz espectáculos de transformismo - Carmen
Duvale - e ele, como eu era da terra e cantava, fiz 3 revistas como atracção
convidada. Há sempre a atracção do Fado…E no Parque Mayer uma amiga falou em
mim ao Hélder Costa. Fiz o trabalho muito interessante de sair as roupas para a
revista, é trabalho muito artístico mesmo. A mestra era tia da Anabela que
também trabalha para o La Féria e para as Marchas. “Lurdes Brás fez fatos para
“João Baião, Marina Mota, Carlos Cunha, Melânia Gomes. Era um elenco assim,
muito interessante.”
Não continuou, porque não estava
disponível, acrescenta.
Quanto ao seu público disse-nos que “é
geral, principalmente para quem gosta de ler.” E informa: “às quartas- feiras
na Casa das Artes há poesia”.
No que concerne ao ofício partilha:
“Trabalho numa loja, faço os arranjos das roupas que vendem. Já passei por
fábrica, alfaiate, várias lojas, e agora estou aqui. Trabalho há mais de
cinquenta anos no meio dos trapos. Nunca deixei de trabalhar mesmo por causa do
Fado. Cheguei a fazer directas, mas como diz o outro, quem corre por gosto não
cansa.”
O seu balanço de vida, é resumido em
breves linhas e com um sorriso: “Desde que a gente faça as coisas por gosto e
se sinta feliz por isso, para mim é o suficiente. Mal entendidos, passam ao
lado. Tenho orgulho naquilo que tenho feito!”
Luís Filipe Maçarico
ONDAS
DE SAUDADE[2]
poema de Maria de Lurdes Brás
Eu nasci no Alentejo
Entre o Rio Mira e o Sado
Nas ondas do meu desejo
Embalo este meu fado
Cabelos feitos de trigo
Searas ao Sul do Tejo
Saudades trago comigo
Eu nasci no Alentejo
A sombra, o silêncio, o sol
Verdes campos, pasta o gado
Canta o velho rouxinol
Entre o Rio Mira e o Sado
E vou sorrindo ao sol-posto
Entre o Rio Mira e o Sado
Nas ondas do meu desejo
Embalo este meu fado
Cabelos feitos de trigo
Searas ao Sul do Tejo
Saudades trago comigo
Eu nasci no Alentejo
A sombra, o silêncio, o sol
Verdes campos, pasta o gado
Canta o velho rouxinol
Entre o Rio Mira e o Sado
E vou sorrindo ao sol-posto
Nas areias limpas festejo
Deixo o vento tocar meu rosto
Nas ondas do meu desejo
Searas verdes e mar azul
Orgulho, não demasiado
Na beleza da Margem Sul
Embalo este meu fado.
Deixo o vento tocar meu rosto
Nas ondas do meu desejo
Searas verdes e mar azul
Orgulho, não demasiado
Na beleza da Margem Sul
Embalo este meu fado.
[1] Fado
do Sobreiro: “Lá no cimo do montado/ No ponto mais elevado/ Havia um enorme
sobreiro/ de todos era a cobiça/Ao dar bolota e cortiça/ No montado era o
primeiro// Mas um dia a tempestade/Fez ouvir lá na herdade/ O ribombar dum
trovão/ E no céu uma faixa risca/ Uma enorme faísca/ Fez o sobreiro em carvão//
Passaram anos e agora/ No mesmo sítio lá mora/ Um chaparro altaneiro/ E em
noites de luar/Ouve-se o montado a chorar/ Com saudades do sobreiro//É assim a
nossa vida/ Constantemente vivida/ Quase sempre a trabalhar/ Mas se um dia a
morte vem/ Nós deixamos sempre alguém/ Com saudades a chorar//.
[Letra de Abílio Morais; Música de Alfredo
Duarte (Marceneiro)]
[2] Recolhido em http://mlurdesbras.blogspot.com/2016/01/ondas-de-saudade.html
[consultado em 14-9-2019]
*Entrevista publicada na revista "Alentejo" nº 46, Junho/Novembro 2019.
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