"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

sexta-feira, dezembro 20, 2019

ENTREVISTA COM FILIPE LA FÉRIA: TENHO GRANDE ORGULHO DE SER PORTUGUÊS E DE SER ALENTEJANO *





Ser Humano culto, talvez filósofo, com quem dá gosto falar, Filipe La Féria autodefine-se como um “faz-tudo”, pois escreve, encena, compõe a música, intervém nos cenários e sobretudo vibra com o Teatro, essa enorme paixão à qual se entrega integralmente, celebrando a Vida.

Somos recebidos com simpatia contagiante, apesar do seu cansaço, pois enquanto acompanha o espectáculo em cena, já anda numa enorme azáfama, a ensaiar aquele que se segue.

Como ele diz, mesmo que o Teatro seja “a grande mentira”, o que faz transmuta-se na grande verdade que fascina o público.

Através dos bastidores do Politeama, que parece um barco (“barco dos sonhos”, assegura ele) entre o seu gabinete e o palco, para breve sessão fotográfica, La Féria orgulha-se de ter mudado uma rua mal - afamada, transformando-a no ponto de referência que é na Lisboa actual.

O Politeama é o lugar acolhedor para todos os que vindos de longe, apreciam o teatro musical e ali encontram o espaço encantatório de beleza e sortilégio que escasseia nos seus quotidianos.

Transcrevemos a seguir - através das palavras e ideias de Filipe La Féria - os momentos mais vibrantes da conversa que connosco teve.



O MEU CORAÇÃO É ALENTEJANO



Começamos, naturalmente, pelo início da existência.

Na infância de Filipe La Féria desenhou-se a vocação de toda a sua vida. O artista conta: “Sou da Aldeia Nova de São Bento. De uma família abastada, mas muito liberal. Toda a minha infância foi passada no Alentejo. Era uma família muito grande. Comigo, éramos seis irmãos. Fui muito feliz. Tive o grande privilégio de uma família sólida, com uma educação muito boa. Tudo o que sou, devo a essa infância.”

Filipe La Féria diz-nos que tem sido “Uma criança com os olhos abertos toda a vida!” rematando: “O meu coração é alentejano! Ainda vou lá muitas vezes, tenho um pequeno monte ao pé de Safara. É um regresso ao mais profundo do meu ser. É um reencontro com pessoas que partiram, com recordações, memórias.”

Voltando aos seus primeiros anos de vida, La Féria diverte-se a recordar:

“Na infância fazia já (sempre!) teatro! Com uma caixa de sapatos, recortava do “Diário de Notícias” e fazia já teatro no quintal da minha avó, onde levava uns tostões a quem assistia e começou aí a vida artística e de empresário.”

“Fiz a primária - prossegue - no Alentejo. Vivi muito com uma tia minha na Aldeia Nova. Lembro-me de quando o lápis caía. Os colegas iam descalços para a escola. Era um outro Portugal…”

Entretanto prosseguiu os seus estudos “Em Lisboa, no Colégio Infante Sagres, nas Laranjeiras, Palma de Baixo. Depois fui para o Conservatório Nacional. Estreei-me muito cedo na Companhia Amélia Rey Colaço, no Teatro Nacional.”



A GENTE AJOELHA-SE PERANTE O ESTRANGEIRO, QUANDO TEMOS GRANDES POETAS, ESCRITORES, PINTORES, ACTORES!



Grande e longa foi a caminhada de meio século de Teatro. “Fiz mais de quinhentas peças. Fui actor durante doze anos. Nasci para “Faz - Tudo”. Gosto de fazer música.

Evocamos a sua consagração na Casa da Comédia, [onde dirigiu Teresa Roby, Rogério Samora e João de Ávila, entre outros actores, produzindo êxitos como “Eva Péron”, “A Paixão Segundo Pier Paolo Pasolini”, “What Happened to Madalena Iglésias”, com Rita Ribeiro]: “Começámos lá [como empresário] e acabámos no Coliseu dos Recreios. Foi uma reviravolta no Teatro. Seguiu-se um espectáculo histórico [“Passa por Mim no Rossio”, com Ruy de Carvalho, Varela Silva, Catarina Avelar, João Perry, Fernanda Borsatti, Lurdes Norberto, Irene Isidro, São José Lapa, Henriqueta Maya, Eunice Muñoz, entre outros].

A aposta no Politeama “dura há quase vinte anos. Dezenas e dezenas de peças! Vem público desde Vila Real de Santo António. Esta rua foi modificada pelo teatro Politeama. O espectáculo “Amália” [com Alexandra, Anabela, Liana e Carlos Quintas] esteve seis anos em cena, com milhões de espectadores. Tornou-se um “ex-libris” da cidade.”

Como conseguiu tanta adesão junto do público?

A chave do sucesso “É a qualidade, é o talento. Nasci com este dom de fazer espectáculos. O talento, como dizia Amélia Rey Colaço, é 95% de trabalho. Os outros 5% é jeito…”

Para si, o teatro é um entretenimento ou também deve ter um papel pedagógico importante?

“Eu tenho sempre um papel pedagógico no que faço. “A Severa” está há oito meses em cena. “A Severa” é uma lição de História. A grande força do teatro é falar de nós próprios. O teatro surge na Grécia, porque os gregos queriam transmitir a sua História às novas gerações. O teatro é entretenimento, prazer, ensina, educa, é um grande espelho para os espectadores se reconhecerem. Com a luz e a sombra que o Ser Humano tem.”

Recuamos à sua vivência de Londres. Ali estudou Arte Dramática…

“As bolsas de estudo eram pequenas. O Teatro, - a Cultura - é o parente pobre de tudo. Toda a experiência é importante. Até estar a falar com vocês! Não há milagre maior do que estar vivo! [voltando a Londres] Em Londres há muito bom teatro mas também há mau. A gente ajoelha-se perante o estrangeiro, quando nós temos grandes poetas, escritores, pintores, actores! Os ingleses gostam de si próprios. Nós invejamos - e isso é muito provinciano!”



OS ACTORES SÃO CONDENADOS DA SENSIBILIDADE



Abordamos a sua participação na Televisão.

“Fiz horas e horas de televisão mas a minha paixão é o teatro, é olhos nos olhos com os espectadores. Isso só se consegue no teatro.

Todos são filhos do Teatro, que é a mãe de todas as Artes. O Teatro é a Vida!”

Qual foi o seu primeiro desempenho no Teatro?

“Gil Vicente, no Teatro Nacional”.

La Féria aproveita para valorizar o que está a fazer agora:

“Não se deve voltar ao passado. Devemos gostar do presente. O futuro há-se ser o resultado de nos afirmarmos e de vivermos!”

Acerca dos actores com quem trabalhou, realça:

“Os Actores são condenados da sensibilidade. Devo ter trabalhado com quase todos. Trabalhei com grandes actores. São seres muito delicados. Sedentos de Amor e de serem amados!”

O seu olhar sobre o teatro tem esta profundidade: “O teatro ajuda a crescer, a conhecermo-nos a nós próprios e aos outros. É um meio sem tabús, onde pode dar largas à sua imaginação. Um Actor demora dez anos a fazer!”


HOJE HÁ A CENSURA ECONÓMICA E DA ESTUPIDIFICAÇÃO COM TELEVISÕES ESPECIALIZADAS EM CRIMES ONDE TUDO É ESPECTÁCULO



Chegados aqui é inevitável aos entrevistadores regressar ao passado para abordar a Censura.

“Era horrível, os ensaios da Censura! Fizemos um clássico, Lope da Veja - Fuentovejuna. Tivemos dezasseis ensaios de Censura! Mas hoje também há a censura económica e da estupidificação. Hoje vivemos uma censura mais sofisticada, com televisões especializadas em crimes, onde tudo é espectáculo!”

Em jeito de remate, La Féria afirma com veemência:

“Temos grandes actores e escritores. Não devemos ter vergonha de sermos portugueses. Tenho grande orgulho de ser português e de ser alentejano! O alentejano é um povo que viveu sempre na adversidade. De uma erva daninha fazemos uma sopa (com pão!)

Gosto muito de falar com pessoas, até com quem guarda cabras. Eles por vezes sabem mais que nós. Um pastor de cabras conhece o tempo que vai fazer e sabe falar com o vento!”



Luís Filipe Maçarico / Rosa Honrado Calado
Fotografias de Luís Filipe Maçarico (o artista no Politeama e aspectos da casa onde nasceu em Vila Nova de São Bento, actualmente sede da junta de freguesia local)

*Entrevista publicada na revista "Alentejo" nº 46, Junho/Novembro 2019. 


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