"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

sexta-feira, dezembro 20, 2019

ALCÂNTARA: METAMORFOSES DE UMA FREGUESIA DA LISBOA OCIDENTAL *





Alcântara terá sido um arrabalde de Lisboa, território de quintas e palácios da nobreza, onde a aristocracia se refugiava, fugindo das doenças que assolavam o centro da capital, como a peste. O seu nome deriva do árabe Qântara, que significa ponte. Ponte que ligava a zona à cidade. Ponte que voltou a existir em 1966, ligando agora as duas margens do Tejo.

No século XV surgiram as primeiras actividades industriais, ligadas às pedreiras, das quais se extraía pedra para cal, originando fornos de produção dessa substância.

Entretanto, em 25 de Agosto de 1580 defrontaram-se os exércitos de António Prior do Crato e de Filipe II de Espanha, na batalha de Alcântara, perdendo-se a independência, retomada somente em 1640.

Em 1582 e com o patrocínio do soberano espanhol, foi fundado o convento das Flamengas e mais tarde, em 1617, o Mosteiro do Monte Calvário, também feminino, começando esta zona a ter uma presença religiosa importante.

No alto de Santo Amaro, a Capela do século XVII assiste a peregrinações de galegos que ali vão orar e folgar. Ainda hoje (embora seja uma festa recriada) se realiza anualmente a Romaria, no final de Junho.

O aparecimento de fábricas de curtumes e de pólvora (1690/1728), poluiu as águas que corriam entre os campos. O Marquês de Pombal, cujos pais foram proprietários da Quinta, posteriormente designada do Fiúza, assim chamada por ter sido pertença de um magistrado com esse nome, estimulou a criação da Tinturaria da Real Fábrica das Sedas. No palácio com a mesma designação haviam de reunir-se posteriormente conspiradores republicanos, contestatários da velha élite e das ideias dominantes.

O terramoto de 1755 vai deixar marcas de ruína nos conventos e outros edifícios, saindo a corte do Real Palácio de Alcântara para se instalar na Real Barraca da Ajuda, um palácio de madeira, profusamente evocado por Baptista Bastos no seu romance “Cão Velho entre Flores”. A inauguração da Igreja Paroquial de S. Pedro de Alcântara, em 1788, revela segundo alguns autores uma miniatura da basílica da Estrela.

Notável é a criação da Real Tapada, onde em 1852 se instituiu o Instituto de Agronomia. Com 100 hectares, no reinado de D. Luís passa a ter um belíssimo pavilhão de exposições, construído em ferro e vidro.

Entre 11 de Setembro de 1852 e 18 de Junho de 1885, e durante pouco mais de três décadas, constituiu-se e desenvolveu-se o concelho de Belém, cujo primeiro presidente foi Alexandre Herculano.

Abarcava aquele concelho territórios de Ajuda, Belém, parte de São Pedro de Alcântara, Santa Isabel, São Sebastião da Pedreira, Nossa Senhora do Amparo de Benfica, São Lourenço de Carnide e Menino Jesus de Odivelas.



No século XIX verificou-se a proliferação de unidades industriais, que tentaram aproveitar ainda a existência da ribeira, espalhando-se ao longo de um espaço delimitado pelo rio Tejo e o curso de água local que foi posteriormente encanado, tal eram os odores e a necessidade de construir uma rede viária.

Na primeira metade daquele século surgiram as Fábricas de Fiação e Tecidos Lisbonenses e a Companhia Lisbonense de Estamparia e Tinturaria de Algodões.

Em 1864 surgiu a Companhia de Carruagens Lisbonenses, aparecendo seis anos depois o carro americano. O caminho - de - ferro que chegou cedo a Alcântara-Terra, durou pouco tempo a levar passageiros para sintra, passando a servir durante largos anos só para o transporte de mercadorias.

Ao pé das chaminés, multiplicaram-se as tabernas (eram inúmeras). Uma colectividade musical - Sociedade Filarmónica Alunos Esperança (SFAE) ainda hoje existente, tentou valorizar o ensino da música entre a classe operária. Institui-se a União Fabril, mais tarde CUF, fabricando sabão, velas, adubos e outros produtos.

No dealbar do século XX, três cinemas procuram trazer a sétima arte junto do povo.

Nos primeiros anos de 1900 faz sensação a Feira de Alcântara. Com atracções de causar espanto, barracas de comes e bebes, teatro e circo, entre outras novidades.

A Carris dá os primeiros passos.

A semelhança de Alcântara com as cidades industriais inglesas atinge o auge a partir da construção da Fábrica Napolitana, tendo sido usado tijolo refractário nos seus quatro andares. Nas obras que evocam ou estudam esta arquitectura há quem compare este edifício a uma catedral.

O ferro forjado (presente no antigo mercado) e a azulejaria embelezam as fachadas,

Durante o Estado Novo, a gare marítima de Alcântara liga Portugal ao mundo, havendo painéis de Almada Negreiros exaltando a Nau Catrineta e o afã das mulheres que ganhavam o pão nas duras actividades da descarga de mercadorias das fragatas do Tejo.

Em 1932 passou a desfilar na Avenida da Liberdade, a Marcha desta freguesia da cidade, terra de marinheiros, varinas e carroceiros, tendo como primeira madrinha a jovem fadista Amália Rodrigues, que cantava na verbena do Carcavelinhos e venderia limões na doca.

Os pátios e as vilas operárias passaram a pontuar a paisagem humana, tal era a abundância de trabalhadores das várias indústrias (têxteis, química, cerâmica, metalurgia).

Naturalmente, o associativismo alastrou, a partir do triunfo das ideias liberais, fortalecendo-se com o espírito republicano. São disso exemplo a já referida SFAE e a Sociedade Promotora de Educação Popular. O Atlético Clube de Portugal nasce nos anos 40 da fusão do Carcavelinhos Foot-ball clube com o União Foot-ball Lisboa, clubes desportivos da primeira década de novecentos. A Academia de Santo Amaro é também resultado da fusão de três colectividades do século XIX com vocações recreativas, musicais e teatrais.

Alcântara tem sido abordada pelas Ciências Sociais, havendo contributos fundamentais para o seu estudo, de Ana Luísa Janeira, Carlos Consiglieri, Cláudia Leitão, Jorge Custódio, Mário Freire, Marina Tavares Dias e Norberto Araújo, só para citar alguns dos mais conhecidos.

Do passado ficaram as marcas visíveis dos Palácios Burnay, da Ega, Vale Flor, Conde Sabugosa e Palacete da Ribeira Grande. Esta freguesia de Lisboa, que na transicção do século XX para o XXI se transformou num sítio de lazer, oferece agora as Docas, um conjunto de bares e restaurantes, com esplanadas ao lado do rio, uma restauração de nomeada e a Lx Factory, nascida em 2008, num cenário industrial, onde encontramos inúmeros contributos para um melhor conhecimento da moda, dança, cinema, publicidade, comunicação, multimédia, arquitectura, decoração, música e literatura (Livraria Ler Devagar).

O edifício da Comissão Reguladora do Bacalhau de 1939 transmutou-se em 2008 no Museu do Oriente.

As metamorfoses de Alcântara são afinal o espelho da evolução da cidade e do país.

*artigo publicado na revista da Aldraba, Associação do Espaço e Património Popular.



Luís Filipe Maçarico (texto e fotografias a estação de Alcântara-Terra e da marcha de Alcântara). Graça Nogueira da Silva (fotografias da Capela de Santo Amaro e do adro em forma de proa de navio).

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