As histórias de vida constituem uma fonte
de informação sobre o passado, das cidades e da Comunidade, quotidianos,
profissões, estorvos e superações pessoais e colectivas. Na entrevista que a
seguir se transcreve, reconstitui-se um percurso biográfico, valorizando-se o
singular, enquanto objecto de estudo. Ao longo da conversa foi evidente que nem
o relato dos acontecimentos surgiu ordenado nem todos os eventos apareceram na
narrativa, tendo o entrevistado revisitado factos que lhe tinham escapado. Nomes
e lugares ficaram envolvidos numa espécie de nevoeiro ou, aplicando a
explicação de Marc Augé, acerca da Memória e do Esquecimento, as recordações
sofrem uma erosão semelhante à das falésias do litoral.
Figura popular de Almada velha, nas
últimas três décadas e meia, Afonso Miranda acedeu fazer uma pausa na sua
constante actividade, à frente da Pastelaria “Sino Doce” para responder às
nossas perguntas. Começámos por querer saber onde nasceu e como foi a infância
e a Juventude?
“Nasci no Hospital, em Torres Vedras.
Daqui é que fui para a aldeia (Silveira), até aos 12 anos. Foi uma infância
muito pobre, perto da praia de Santa Cruz. A minha mãe trabalhava no campo,
vida dura. Um dos trabalhos da minha mãe era reparar as barracas de lona da
praia de Santa Cruz e eu ia molhar o pé…O meu pai veio trabalhar para
Sassoeiros, na Quinta do Barão, do vinho de Carcavelos. Essa vinha foi renovada
pela equipa que o meu pai arranjou…Tenho irmão mais velho e irmã. Concluí a
instrução primária lá. Ainda não tinha doze anos vim para Lisboa. O meu irmão
que tem mais oito anos, orientou, protegeu, foi um pai. Fui trabalhar na Av.
Defensores de Chaves, numa mercearia, como marçano, durante um mês. Depois
estive quatro anos na Alameda das Linhas de Torres. O patrão era da zona de
Alenquer. Sendo merceeiro, era pessoa aprumada. Aprendi com ele.”
- Tem saudades da sua terra? Costuma ir
até lá?
“Costumo lá ir! É sempre a minha terra.
Gosto. Tenho a memória de jogar à bola, brincar, ir à escola e ter um grupo, o
grupo dos sete, designado “Os Gajos da Silveira” - lá da aldeia, que nos
juntamos, de seis em seis meses. São do melhor! A minha terra é a aldeia do
Joaquim Agostinho. É uma referência. Com dezassete anos tive conhecimento de
haver trabalho para a época balnear na Praia de Santa Cruz. Fiz duas épocas de
praia.”
- O percurso profissional e a sua
especialização derivam de uma vocação?
“Não, foi o meu irmão que me arranjou
emprego numa pastelaria na Praça do Chile [“Raio de Luz”]. Tive um episódio
marcante. O patrão deu-me cinco contos para ir ao Grémio (Agora é Associação de
Industriais de Pastelaria) pagar açúcar e farinha. Levava o dinheiro e a
requisição num livrito de cow-boys. Junto ao Jardim de Cesário Verde dei por
falta do envelope. Encontrei o papel, mas o dinheiro não. O dono da pastelaria
era um senhor cinco estrelas. Era uma pessoa de nível. Fiquei a pagar um tanto
todos os meses e depois ele perdoou parte da dívida…Quando vim da primeira época
de praia fui trabalhar no Café Império. Tinha cem colegas. Fazia a folga dos
outros todos (no balcão do restaurante, na pastelaria, lá em baixo eram só
cafés…). Estive nove meses. Quando saí do Império, fui fazer outra época de
praia. Gostava de lá estar (era o nº 13) ao fim de seis meses era o nº 3. Não é
que fosse tão bom assim. Os outros é que iam embora. Até me queriam aumentar.
Tinha de andar de lacinho e jaleca. Quando venho da segunda época de praia, com
19 anos, fazia parte de um grupinho - doze - de rapazes na Praça do Chile (eu
vivia na Cavaleiro de Oliveira), onde estava o malogrado recentemente falecido
Jordão, que nessa época era júnior do Benfica. Nesse grupo havia dois elementos
que trabalhavam na “Ferrari”, considerada uma das melhores casas do país. Um
deles estava mobilizado para a guerra colonial. Tive a sorte de ir para lá.
Estive dez anos na “Ferrari”. Fui para Cabinda nos últimos anos da guerra. Saí
das Caldas em Dezembro de 1973, fui em rendição individual. Tive a sorte de ser
colocado no Comando de Sector. Estive na cidade. Cheguei de Angola no dia em
que os trabalhadores da “Ferrari” começaram a fazer o controle operário. Fui
delegado sindical e da Comissão de Trabalhadores ao mesmo tempo. Em 1979 propus
a categoria de terceiro pasteleiro, que foi aceite (As direcções do Sindicato e
do Patronato normalmente são dos hotéis) tínhamos um contrato com três
categorias. Tinha de integrar nove elementos com várias categorias. A minha
proposta era passarem a ganhar o dobro do ordenado…”
-Lisboa foi importante na sua caminhada?
“Lisboa é a minha querida terra. Eu
adorava Lisboa. De vez em quando vou para Lisboa. Conheço a cidade a pé. Vivi e
trabalhei lá.”
- Como surgiu Almada no seu percurso?
“Por acidente. Quando casei, fui morar para
Benfica, para casa da tia da minha mulher. Vim para aqui, para casa maior.
Fiquei com a mãe do meu sogro, a sogra, a minha mulher, a filha da tia, a minha
filha que nasceu e a cadela. Quando viajava no Fiat 600 alguém ficava em terra!
O meu pai vivia sozinho, apareceu-me. Declarou-se a doença da minha mulher. O
meu pai foi para as Costas de Cão (Lar da Misericórdia de Almada) e tratava do
jardim.”
- Como nasceu o “Sino Doce”?
“Foi fundado em 1981, com dois sócios que
vieram da “Ferrari”. Vínhamos do Chiado para a “terra dos Comunistas” e por
nossa conta…Isto era uma gelataria e cafetaria muito fina para a altura. Isto
aqui era montões de gente, ao fim de semana. Havia cinema na Academia!”
- Como se conquista e assegura um grupo de
clientes tão variado (e fidelizado)?
“A casa ganhou um certo nome, vieram três
profissionais de casa conceituada. Enveredámos por bolinhos de confecção
caseira e temos colaboradora que assegura o fabrico de bolos de aniversário. Eu
tinha lista de vinte e duas pessoas que faziam bolinhos. Ia com o carrito
buscar os bolos, que tinham muita aceitação. Cheguei a trazer nove bolos de um
quarto andar, sem elevador. Aquilo podia cair tudo. Sofre-se muito para ter uma
casa destas. Havia um juíz do Tribunal de Almada, famoso por cantar fado de
Coimbra - Machado Soares - que um belo dia diz assim: “Esta casa é a casa do
país que tem maior variedade de bolos bons!” Frequentaram isto o Maestro Lopes
Graça, o Paulo de Carvalho, uma pessoa que eu gosto muito, nessa época vinha
com a Isabel Baía. Já entrou aqui o Francisco Louçã, o Sérgio Godinho, a antiga
presidente da Câmara (Maria Emília Sousa) vinha todos os dias.”
Ficaram registados inúmeros episódios,
momentos alegres e menos risonhos, nas folhas de papel onde se apontaram as
estórias do quotidiano de uma casa assim.
Antes de terminarmos as duas horas de
diálogo, e quase em jeito de balanço escutámos isto: “Não somos nós que somos
bons. Infelizmente, o que havia há trinta e tal anos era de muito má qualidade.
Até em vãos de escada qualquer caramelo punha máquina de café e a “patroa”
fazia pastéis…Temos a sorte de estar em frente à maior sala de cinema do país.
Tenho consciência que primeiro que tudo é a qualidade.” Por outro lado,
acrescenta: “Devia ser obrigatório ter pessoal com formação. Outra coisa: a
escolaridade obrigatória. Eu é que acabo por dar formação. Não é dizer que em
terra de cegos quem tem olho é rei, é ter consciência que a qualidade é o mais
importante!”
À despedida, o senhor Afonso Miranda que
coleciona frases e provérbios, deixou estas palavras para reflexão: “A
Felicidade não existe no facto da ausência de problemas, mas sim na capacidade
de lidar com eles.”
Luís
Filipe Maçarico (artigo e fotografias)
Revista nº 26 da Aldraba - Associação do Espaço e Património Popular
2 comentários:
Obrigada mais uma vez Dr Luis Macarico por nos dar a conhecer as nossas gentes Parabens Sr Afonso por ser a pessoa que é Sempre disponivel no seu bom atendimento Muitos anos de trabalho em Almada e a porta do Sino Doce sempre aberta e lá estava o Sr Afonso com a sua simpatia para nos atender
Realmente é uma casa que prima na qualidade do seu produto, só é pena que a pessoa em causa e sindicalista que foi, tenha nos ultimos 5 anos explorado os trabalhadores, tendo funcionarios anos sem contrato e sem regalias.Colocando funcionarias a fazer parte times, para depois fazerem horarios inteiros.E o que é de gentil e simpatico com os clientes seja de intragavel com os funcionarios.A falta de formação não é dos empregados mas sim desse Sr.Afonso Miranda.
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