No passado dia 10 de Março (há portanto quinze dias) na Biblioteca Municipal José Saramago, de Beja, o escritor Martinho Marques apresentou o meu livro"Vozes do Tempo", perante um público interessado na leitura e no conhecimento. Apesar de não ser muito numeroso, incluía duas Mulheres desempoeiradas, vindas do concelho de Serpa, dois fraternos Amigos, residentes em Castro Verde e alguns bejenses, que acorreram à iniciativa.
Grato a todos e particularmente ao autor de "Nómada Sentado" e à minha querida Amiga Paula Santos, pelo simpático convite, que continuarei a tentar corresponder, com novas obras e partilhas.
Um pequeno exercício de memória
e com o meu resultado da leitura
da obra “Vozes do tempo”,
de Luís Filipe Maçarico
Sei
do Luís Filipe Maçariço desde os tempos em que o jornal “O Cardo” se publicava,
no idos anos 80 do século em que vivi as primeiras cinco décadas da minha vida.
Então eu sabia-o só dos poemas que mandava, com dimensão reduzida e força
descomunal. Lembro, em particular, a sua definição de clip, “o dente
/ de aço / que não permite / desencontros / entre duas formas / de abordar / um
só assunto” e que já incluí numa espécie de antologia/memória de textos
desse jornal, uma heróica tentativa de divulgar novos escritores (embora nem
todos eles, pelo branco dos seus cabelos, pudessem ser considerados escritores
novos), associado então à que era designada por Associação de Novos Escritores
do Sul, que me deixou saudades de todos os que por lá eu encontrei, mas não me
deixou vontade de ingressar noutra aventura (que sempre temi que fosse)
parecida com aquela, que deu pouco resultado, para além das amizades que proporcionou.
Do
Maçarico sabia dos seus textos. Da pessoa falava-me o nosso conterrâneo António
Joaquim Linhaça, natural da Boa Vista, quando o Luís trabalhava na Câmara
Municipal de Lisboa e o Linhaça enaltecia as suas qualidades de criador activo
e de activista e se referia à vida nada fácil que era então a sua.
O
tempo foi-se passando, sempre comigo a seguir a sua obra, que ia crescendo, e
em campos muito diversos (até porque, entretanto, o seu autor cursava
Antropologia e terminava um mestrado nessa área), com muita colaboração em
inúmeros locais, chegando inclusivamente a assinar recensões a livros de
autores vários (e, entre eles, porventura algum ou alguns dos meus).
O
homem conheci-o pessoalmente há pouco tempo na Casa do Alentejo (há-de fazer
dois anos em Novembro), num encontro de homenagem ao poeta Eduardo Olímpio
(ainda que, a seu pedido, a palavra homenagem não constasse). Sem haver
muita frequência em contactos posteriores entre mim e o Luís, eles, no entanto,
ocorreram, até ao ponto de estarmos hoje de novo em confluência, à volta de
dois novos livros dele, um dos quais (“Vozes do Tempo”) ele me desafiou a
apresentar, o que procuro fazer neste momento, sem confiar nas palavras que
dissesse conversando (os improvisos resultam, sobretudo, quando são bem
preparados) e preferindo confiar a um papel o que eu achasse dever ou ser capaz
de dizer deste seu livro, depois de o ler na íntegra com gosto (e grande parte
em voz alta).
Pois
bem… O “Vozes do Tempo”, além do que o introduz, é composto de oito textos das
décadas de 80 e de 90 do século em que, a três anos de distância, ambos
chegámos ao mundo.
Alguns
serão da época d’ “O Cardo”. Apesar de quase todos terem sido publicados na
altura e apesar da idade que eles têm, penso que se justifica reuni-los num
único caderno. Eu imagino o carinho que o autor terá por eles, até por serem de
um tempo de colossais dissabores, mas em que a força abundava, e era tanta, que
o Luís tem essa época por um período em que ele “era infeliz e não sabia”. Faço
questão de o lembrar, porque acho saborosa a confissão... e não porque ele mo
dissesse, mas porque Maria Bispo o refere no texto introdutório a estas “Vozes
do Tempo”, que lhe devem ter deixado fundas ressonâncias, porque não creio que
as suas múltiplas actividades do presente se consigam sobrepor aos restos dos
trinta anos. É que, embora não se admita que a saudade nos possa possuir, tal
não depende somente de nós próprios. É o tempo e sempre o tempo que, mais tarde
ou mais cedo, trata disso.
Na
amável dedicatória com que o Luís me brindou logo no início do livro,
aparece-me o aviso: “Ora toma lá prosa (por vezes poética, admito)” e
“São contos, senhor… autobiográficos”, o que cedo confirmou aquilo
de que eu já desconfiava (até pelas muitas imagens inseridas na brochura) e que
me fez pressupor ser o autor o melhor apresentador da colectânea de textos que
tinha nas minhas mãos. Assim sendo, seria preferível eu ler-vos todos estes
belos textos e ouvirmos depois o autor falar-nos do seu trabalho, depois de
vocês próprios os sentirem e entenderem e concluírem se o Luís tem razão quando
admite que esta prosa, por vezes, é poética.
Eu
diria que o é frequentemente.
Escutem
estes fragmentos que, ao acaso ou quase assim, vos trago dos vários contos:
Acordei
diversas vezes durante a noite, e, quando a manhã nasceu, fresca e exuberante,
saudei pinheiros, eucaliptos, o céu, o velho moinho, as ervas selvagens, as
aves, as estradas, o Jamor, tudo!
Quando
passarem pelo lote quarenta e seis da Urbanização da Portela, saibam que, antes
daquilo ser um prédio, eu andei lá com muitos outros homens, ajudando a semear
as raízes dessas paredes altas e vigorosas, fui um dos que participaram no
crescimento das estruturas, transformando os caboucos em asas.
Procurando
a metade perdida
Mato
estes medos de mim.
Aí
por volta dos dezoito anos, depois de ter descoberto na escrita um refúgio
contra a corrente e um estímulo para encontrar o sabor dos dias, embora me
limitasse a assimilar influências, ensaiando débeis passos, comecei a ver em
cada palavra uma ponte importante para chegar aos outros.
Apesar
de não ser fácil separar o que é poético daquilo que não o é (em arte
objectividade nem sei se pode existir), creio que por estes textos, que não
ficaria mal se chamássemos poemas, vem emoção e, talvez, a poesia já seja
aquilo que a faz nascer.
Se
quiséssemos classificar este grupo de oito contos (e classificar é optar pelo
que de comum encontra nos elementos que integram o universo em referência,
podendo dar primazia ao que outros desprezarão), diríamos que seis deles
descrevem situações simples e atitudes de pessoas, mostrando a autenticidade, a
humanidade e a grandeza existentes em gente que geralmente é tida por pequena.
São eles: “O meu dia de trabalho nas obras”, “Lote quarenta e seis”, “A avó e
os versos”, “O barbeiro Augusto”, “O velho e o tempo” e “Manuel Losté”.
Restam-nos “Sessão solene” e “Pardieiros”.
“Sessão
solene”, tratando igualmente de uma situação simplicíssima, em cerimónia de
entrega de prémios aos vencedores de certos jogos florais, parece-nos de
inserir mais no âmbito da sátira e da caricatura e, em vez de evidenciar
grandeza humana, evidencia a mesquinhez e a pequenez das pessoas, candidatas a
ser grandes ou confusas sobre o que é a grandeza.
“Pardieiros”,
o mais extenso e o único que o Luís deixou inédito até este livro (e que teve
por base um texto premiado no concurso InterArte 84), parece-nos também o mais
complexo e, adicionando às palavras –
poderosamente poéticas –
bastantes “intermitências” (chamemos-lhe assim, na falta de melhor), trata,
segundo o autor, de “um encontro amoroso, na grande cidade, em tempo de
opressão e pobreza” e constitui para si “um exorcismo” (a confissão é do
próprio e só não irá mais longe se ele o não pretender).
Mas
não queria deixar de ler na íntegra, pelo menos, um dos contos, de que à
partida, excluía “Pardieiros”, pela sua dimensão.
Dos
outros, pela dimensão, poderia optar por qualquer deles, mas abdicava também da
“Sessão solene”, pela excepção que constitui.
Dos
restantes, poderia trazer-vos “O meu dia de trabalho nas obras” ou “Lote quarenta e seis”, com o labor
iniciático de um operário que reconhece e refere que não trabalha sozinho. Ou
“A avó e os versos”, em que é concedida ao neto licença para fazer a sua
escrita, depois de ver que a respeitam, desde que não descure a Matemática. Ou
“O velho e o tempo”, em que o velho ocupante do terreno onde muito em breve
iria nascer um polidesportivo reage desta maneira: “Vocemecês não podem esperar
até eu colher as batatas que semeei?”. Ou até “Manuel Losté” que, rente ao mar
do Algarve, lá nos confins de Aljezur, discreto e “parco no verbo”, tem uma
sabedoria que lhe veio de muito ter vivido e uma sensibilidade “como uma jóia
secreta”.
Optei
pel’ “O barbeiro Augusto”, esse homem, ao mesmo tempo, comum e extraordinário,
que “manejava tesouras e navalhas, escovas e palavras com uma precisão ímpar”.
…………………………………….
E
é tudo, para já. Mais só direi se a conversa me levar a isso… e penso que
levará.
Peço
desculpa por exagerar na dimensão do que disse… sobre um poeta que age, sobre
este poeta agente, poeta para quem a gente é muito.
A
terminar, gostava de dizer que gostei de saber que ele gostou quando um dia lhe
chamei “poeta de muitos caminhos”… que é apenas o que ele é.
Beja, 10 de
Março de 2018
Martinho
Marques
Introdução: LFM. Texto de Martinho Marques. Fotografias de Madalena Borralho e LFM.
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