"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

sexta-feira, outubro 30, 2015

O Texto de Cristina Pombinho na Apresentação do meu Vigésimo Livro de Poesia




Apresentação do livro É de Noite que me Invento, de Luís F. Maçarico

O maior desafio da apresentação do livro do Luís, não é apreciar a sua escrita, nem as suas características enquanto poeta, mas é distanciar-me da apreciação que estou a fazer, uma vez que a minha história confunde-se também com muito do que o Luís escreve. E a leitura deste livro em particular não deixa de ser um mergulho no meu próprio passado. Muitos dos poemas que aqui encontramos são um pedaço de tempo em que eu também participei. Conheço as histórias que conduziram às emoções partilhadas nestes poemas. Ao lê-los, dou por mim a reviver também alguns dos momentos da minha própria história. O eco dos sentidos, dos pensamentos, das emoções expressos nestes poemas ainda me assomam à memória. Tenho que confessar, portanto, que não poderei ser imparcial. Tentarei, no entanto, olhar para as palavras que aqui nos são doadas com a imparcialidade possível de quem olha, por vezes, para si próprio, mas de uma outra dimensão.
E a poesia é, de facto, uma outra dimensão da realidade na qual nos é permitido eventualmente participar. É, todavia, uma dimensão tremendamente real, porque vem despida de falsidade e cuja racionalidade, indispensável para a compreensão humana, vem filtrada pela emoção de quem sabe ser essa a essência própria do Ser.
Conseguir traduzir para a neutralidade dos símbolos verbais a essência do que somos é, pois, uma das maiores virtudes da poesia do Luís. As palavras perdem assim o significado literal que a conceptualização lhes atribui, para se transformarem em seres viventes, dotados de autonomia e significado próprio. Compreendê-las é conectarmo-nos com o que misteriosamente ocultam. Diz-nos o poeta em Caligrafia do Silêncio:

Escutas o coração
Batendo descompassado
Tens a noite nas veias
A gastar-se
Como areia entre os dedos
Escutas o que não podes ouvir.

Assim, as palavras que dançam nos poemas do Luís surgem por vezes nuas, embora prenhes de significado, vazias, porque surgem como veículo do não dito, do próprio silêncio, embora prenhes da vida quotidiana também dos outros. A poesia do Luís fala da vida de todos nós, mas como se cada instante da vida de todos nós tivesse a beleza da originalidade que ninguém mais partilha:
E dou-te voz, oh discreta
Anónima
Mulher
Dos eletrões
Transformados
Em crochet
No pandemónio
Dos engarrafamentos
Ouvindo palavrões
Mastigando
Lentamente
A tosta
Da dieta
E da paciência
Enquanto eu
Transpiro
Utopias
Para voltar a casa
Com os bolsos
Transbordantes
De palavras

Estou
Onde está
O povo.

(Excerto do poema Oração, in É de Noite que me Invento,)

Falámos aqui duma dimensão mais intimista da poesia do Luís, aquela que, porventura, se pode coadunar mais a este livro e a outros como Da Água e do Vento, A Essência, Íntim(a)idada, A Secreta Colina, Geografia dos Afetos ou Caligrafia do Silêncio. No entanto, o Luís sabe descer também a uma dimensão mais terrena, consciente da dimensão social do homem, escreve também sobre os valores que nos tornam coletivamente humanos. Lembro-me que a nossa amizade começou numa “Marcha da Paz”, há já alguns anos. A luta pelo bem-estar social e pelo bem comum tem sido uma constante dentro da sua versatilidade poética e humana, não só aqui do lado mais próximo de nós, mas também do lado que fica um pouco mais distante:
Teu nome, Palestina,
Também faz parte de mim:
Não é possível sorrir
Se choras; não consigo
Cantar se morres.

(Excerto do poema Teu Nome, Palestina, in Geografia dos Afetos)

Não completamente desligada desta vertente social, surge talvez uma das suas mais significativas marcas, a poesia ligada às viagens, onde está presente o seu lado cosmopolita de cidadão do mundo e a afirmação imponente das suas raízes. Tunísia, Itália, Beira Baixa, Alentejo e, claro, Lisboa, são alguns dos pontos do nosso mapa humano evocados em livros como Mais Perto da Terra, Lisboa Asas de Água, Os Pastores do Sol, Vagabundo da Luz, O Sabor da Cal, Os Peregrinos do Luar, Lisboa, Cais das Palavras, A Celebração da Terra, Pegadas de Luz, Ar Serrano, o belíssimo Cadernos de Areia e Transumância das Pequenas Coisas. Em todos estes livros se manifesta a sua vertente de pintor. O Luís sabe pintar com as palavras e é nos livros relacionados com as viagens que talvez seja mais fácil detetar esta qualidade poética, embora naturalmente cada livro seja uma mistura e uma osmose de todas estas características.
No poema Ksar Guilane, do livro Os Pastores do Sol, oferece-nos esta tela:

Eu vi o deserto
A sua pele de ventos
E os corvos nas dunas

Eu vi a esmagadora
Boca de areia
Na tarde de lumes.

Temos ainda um Luís biográfico, contador de histórias da sua própria vida, cujo livro mais significativo talvez seja o Degraus. Aqui, o Luís é, por vezes, quase criança, estatuto que, aliás, nunca abandonou, com todas as vantagens e desvantagens que isso possa acarretar. O Luís continua uma criança grande que carrega eternamente a sua própria infância:



Via os outros
Chamavam-me
Mas eu não podia sair
Era um menino bem comportado.

À janela
Ouvindo pássaros
Vendo gente e árvores
Mas a querer ir com
Os outros, ir com
Os pássaros de lugar
Em lugar a desinquietar
Os meninos fechados em casa
Para serem bem comportados.

(À Janela in Geografia dos Afetos)

Este seu estatuto de criança permitiu-lhe ainda escrever para estas. Calculo que na dificuldade da linguagem própria das crianças, ele se sinta dentro da sua própria essência. Para quem não conhece recordo livros como A Princesa Joaninha e o Lagarto Saltitão, Azedal Sarzedar e a Manhã de Abril, A Rapariga das Magnólias, A Janela do Armador, O Mistério da Rua Suja, O Sonho de Timor e Flor de Sementinha.

E o amor… que poeta não escreve sobre o amor? Nos poemas de amor do Luís somos eternamente jovens, mas ao contrário de Dorian Gray, de Wilde, assumimos os dias que desenham as suas marcas no corpo que envolve uma alma sem idade:

Esta noite, na velha pedra das igrejas
As estrelas vão florir longe da água
Dos nossos olhos. Já não somos esses
Dois sorrisos que ofereciam sonhos às
Estátuas…

E se ainda deixamos pegadas na memória
De antigos versos, é porque teimamos
Em rezar a uma lua que é sempre bela.

(Jardins de Outono in Caligrafia do Silêncio)
Longe de ser exaustiva relativamente aquilo que é o Luís e a sua poesia, saliento apenas o carater experimental da sua atividade poética. O Luís sai da sua zona de conforto e arrisca ser diferente, seja através das pinturas em toalha de papel que desenha com café, seja através de uma brincadeira que há anos inventámos e que autodenominámos “manancialismo”. Ousámos então, nessa altura, sermos os percursores de uma nova corrente literária que consistia na construção de poemas a partir de um manancial de palavras que considerávamos significativas do ponto de vista poético. Julgo que foi por essa época que, em conjunto com mais duas amigas, escrevemos um livro de 69 quadras dedicadas às galinhas, que se chamava O Suave Milho D’Outrora, de que guardo religiosamente o manuscrito escrito pelo Luís. É coisa para dar cabo de qualquer reputação poética. Os poemas manancialistas não eram, portanto, nada de espetacular, mas esse exercício ajudou-me a crescer na arte da escrita e também contribuiu para que hoje consiga apresentar com alguma leveza e fluência esta articulação de palavras que hoje aqui vos trago.

Finalmente, existe claramente uma evolução poética, ao longo do percurso do Luís. Assim, não poderei afirmar que este é o melhor livro do Luís. O que vos posso dizer é que é um livro que vale a pena ler, mas acreditem que a poesia mais recente do Luís é ainda melhor. Embora sendo naturalmente um poeta, hoje ele é um poeta qualitativamente melhor, a sua técnica aprimorou-se e a maturidade trouxe-lhe a lucidez e a arte que só anos de vivência permitem a quem os sabe aproveitar.
Os anos e os laços que nos unem permitir-lhe-ão desculpar-me a inconfidência de vos dar a conhecer um poema de há já muitos anos, belo como tudo o que o Luís escreve, mas onde a diferença entre a poesia da juventude e a da maturidade estão patentes, embora a identidade que o constitui nunca o tenha abandonado:
A Língua

Sem ela o homem
Não podia dizer sol

Sem ela o menino
Não podia chamar
Amigo ao outro menino

A língua
É um pássaro
Que vai até
Onde nós quisermos
Reitero o que disse no início, é-me difícil, pela proximidade, fazer uma apreciação da poesia do Luís. Não o vejo como poeta. Para mim o Luís é o Luís e ponto final. Mas ontem fiz um esforço e com os seus livros na mão, embora não tenha gostado de todos de forma igual - tenho, entre eles, alguns amantes secretos -, pensei ou, mais do que isso, senti, juro-vos que senti que tinha nas mãos um dos melhores poetas portugueses.

 
Cristina Pombinho
29 de outubro de 2015

3 comentários:

oasis dossonhos disse...

Paula Silva

00:52 (Há 26 minutos)

para mim
Paula Silva deixou um novo comentário na sua mensagem "O Texto de Cristina Pombinho na Apresentação do me...":

Um texto à altura da grandiosidade do amigo e poeta. As mesmas caraterísticas unem estes amigos: a honestidade, a capacidade de ir à essência, o discurso poético, a amizade sem limites. Belo texto, bela apreciação, caminhos que reconheço. Parabéns aos dois, Maçarico e Pombinho. A sessão foi uma emoção repleta de momentos épicos. E este texto foi um desses momentos, entre outros. A ovação a que se assistiu na sala, após a leitura deste texto, a emoção no rosto e no olhar do Luís, o abraço de cumplicidade, são a prova que estamos perante, não um, mas dois, grandes tecelões de palavras e emoções. O Luís quase ficou sem palavras... o que não é fácil. O bebé, pois fazia anos, teve uma sala cheia de afetos, de várias geografias, diversas viagens, onde reinou a poesia viva, a dos gestos. Bem hajas pela partilha.

Paula Silva disse...

Um texto à altura da grandiosidade do amigo e poeta. As mesmas caraterísticas unem estes amigos: a honestidade, a capacidade de ir à essência, o discurso poético, a amizade sem limites. Belo texto, bela apreciação, caminhos que também reconheço, com carinho.
Parabéns aos dois, Maçarico e Pombinho. A sessão foi uma emoção repleta de momentos épicos. E este texto foi um desses momentos, entre outros. A ovação a que se assistiu na sala, após a leitura deste texto, a emoção no rosto e no olhar do Luís, o abraço de cumplicidade, são a prova que estamos perante, não um, mas dois, grandes tecelões de palavras e emoções. O Luís quase ficou sem palavras... o que não é fácil. O bebé, pois fazia anos, teve uma sala cheia de afetos, de várias geografias, diversas viagens, onde reinou a poesia viva, a dos gestos, a do coração. Bem hajas pela partilha de mais um livro de poemas repleto de sentidos.
30/10/2015

Elvira Carvalho disse...

Um texto excelente para um livro que a julgar pelos excertos lidos deve ser muito bom. Gostaria de saber onde o posso encontrar.
Um abraço e mais uma vez os meus parabéns.