"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

sábado, dezembro 08, 2018

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA "ALDRABA" Nº 24


A HISTÓRIA DE UM ENCONTRO DO PATRIMÓNIO TRANSFRONTEIRIÇO



1.O PAN DE MORILLE. ORIGEM DO NOME, OBJECTIVOS E SEUS CRIADORES



Sopram bons ventos de Espanha, desde o início do século XXI, através da realização anual, em Morille, do Encontro Transfronteiriço de Poesia, Património e Arte de Vanguarda em Meio Rural, que completou em 2018 as dezasseis edições. Manuel Ambrosio Sánchez Sánchez[1], alcalde daquele município, da província de Salamanca, comunidade autónoma de Castela e Leão, que tem 22,94km2 e 258 habitantes[2] contou-nos como nasceu este evento: “O PAN surgiu na Primavera de 2003, numa casa particular em Morille, em torno de uma mesa composta pelo então estudante universitário Germán Labrador Méndez, pela professora do ensino secundário Nuria Benito Manjón e pelo próprio Manuel, vereador do Ayuntamiento local, que desejava pôr em marcha um acontecimento cultural, anual, com alcance internacional.

A Poesia seria a coluna vertebral - e o Festival surgiu, também, com Arte de Vanguarda e espectáculos de todo o tipo. O seu carácter rural, festivo (daí o nome do deus grego PAN - que presidia às festas campestres) promoveria o encontro entre escritores, artistas visitantes e a população local. Desde as primeiras edições, quisemos destacar os contactos com Portugal, dotando o encontro de um deliberado carácter hispano-português. A secção “Património” foi incluída mais tarde. A direcção do PAN esteve nas mãos de Fabio Rodriguez de la Flor, editor de prestígio.”[3]

Nos últimos anos, além do autarca, “a equipa integra o escritor e editor António Lopes, Carlos de Abreu, homem multifacetado, geógrafo, escritor e em 2018, Francisco José Lopes, escritor e gestor cultural”.[4]

Na Internet lê-se que o PAN de Morille ocorre durante o 2º ou 3º fim - de - semana de Julho, sendo seus objectivos, além da vocação transfronteiriça, uma orientação interdisciplinar e multicultural, onde se incorpora a provocação e o inconformismo.[5]

2.O CEMENTERIO DE ARTE



Segundo um artigo de Paola Maulén, intitulado “Museo Mausoleo - Cementerio de Arte de Morille Una nueva tipologia de museo?”[6], este espaço nasceu em 17-12-2005, tendo a autarquia local cedido o terreno (90.000m2) e Manuel Ambrosio assumido o compromisso da elaboração, desenvolvimento e financiamento do projecto.

Idealizado pelos artistas Domingo Sánchez Blanco, Javier Utray e pelo crítico de Arte, Fernando Castro Flórez, em 2016 já teriam sido enterradas 31 obras de Arte.

Através da observação-participante, em 2015 assistimos ao enterramento de um objecto de estúdio, pela filha do pintor Jose Antonio Arribas, cuja magnífica exposição “El Quijote”, estava patente no refeitório do Encontro e Leandro Vale (que várias vezes visitou o PAN) falecido em Abril desse ano, foi homenageado com uma peça de fantoches, de sua autoria, “Uma Outra Forma de Contar Abril”, pelo grupo “Nova Morada” e através da curta - metragem, de Rui Pilão, “Aqui Jaz a Minha Casa” (iniciativas bastante concorridas, com uma parte da população da terra a assistir, tendo sido sepultado o televisor, que continuava a exibir o filme).

Em 2017, Maria Lino cujo atelier, em Trancoso, se chama “Temos Tempo”, enterrou uma peça escultórica de sua autoria, em protesto contra a falta de apoio à Cultura, no seu país e em 2018, outra portuguesa, Laurinda Figueiras, com a filha Carolina, celebraram a memória do pai e avô, o poeta e etnógrafo, criador da Ronda Típica da Meadela, José Figueiras, depondo ali, numa caixa, o diploma de mérito, concedido ao ilustre minhoto, a título póstumo, pela Câmara Municipal de Viana do Castelo, ao som de uma salva de tiros, disparada por cinco rapazes.



3-LITERATURA, PATRIMÓNIO E ESPECTÁCULOS



Obras de escritores ibéricos foram apresentadas em 2015, 2017 e 2018, no Saalón de Plenos”, e todos confluíram no Poetódromo, um recanto especial, com bancadas, em pleno campo, rodeado de pastagens, onde os vates de vários lugares de Espanha e Portugal mostraram o seu lirismo.

Em 2015, o poeta albicastrense António Salvado, foi alvo de tributo, com o lançamento do seu livro “Igaedus”.

Jovens poetas, de entre os quais Suso Sudón, Fernando Dias San Miguel ou Raúl Vacas, ombrearam com nomes consagrados, como Monserrat Vilar e Ana Rossetti, só para citar alguns. Portugueses, como Fernando Fitas, João Rasteiro, Aurelino Costa, Carlos de Abreu, Fernando Duarte, Cristina Pombinho, Leocádia Regalo, Sara Timóteo e Maria José Fernandes, além de muitos outros, completaram o elenco dos protagonistas luso-espanhóis.

A presença das filarmónicas transmontanas e do teatro de cariz popular integrou a animação de rua, em Salamanca, Morille e Vilarelhos.

O contributo do Património evidenciou-se na exposição, no volume e declamação de poemas, relativos a viagens de comboio, com “A linha do Vale do Sabor: Um Caminho-de-ferro raiano do Pocinho a Zamora” (2015). Mas também em “Caminhos de Santiago”, “O Saber Médico do Povo”, da autarca de Alfândega da Fé, a médica Berta Nunes, as “Línguas Raianas estudadas por Leite de Vasconcelos, “Usanças de Antanho”, de Laurinda Figueiras (2018).

A Arte de Vanguarda levou a Morille o pintor Rodrigo Dias, que por não poder pregar pregos no espaço ao seu dispor, uma cochera, expôs as telas da colecção “O Minotauro e Lendas da Minha Terra”, em trilhos e manjedouras (2017), tendo pintado ao vivo, quer na sede do Encontro, como na réplica portuguesa, na encantada Vilarelhos[7]

Ao longo das edições que acompanhámos, assistimos a Concertos Musicais significativos, dos quais salientamos “Sonidos del mundo” do argentino Pablo Messelani, Salamenco e o memorável cantautor estremenho Miguel Ángel Gómez Naharro que brincou o auditório repleto cantando “Bella Ciao”, “Ay Carmela” e “Grândola Vila Morena” (2015).

Morille e o seu PAN, como ficou largamente demonstrado, é um lugar muito especial na raia, pela sua oferta cultural, tendo o apoio da Diputación de Salamanca e Junta de Castilla y Léon. Oxalá se mantenham as parcerias, com Alfândega da Fé e Fundão, com quem foi firmado um protocolo pelos respectivos edis, e que num futuro próximo, a Aldraba participe, para falar da caminhada em torno do património imperceptível e pela salvaguarda da sabedoria material e imaterial do povo português. Quem sabe?

Luís Filipe Maçarico



[1] Professor do Departamento de Literatura Espanhola e Hispano-Americana da Universidade de Salamanca. Além de Presidente da Câmara Municipal, é Deputado na Diputácion Provincial.
[2] www.lagacetadesalamanca.es/viva-mi-pueblo/morille [Gazeta de Salamanca, on line, consultada em 23-9-2018]
[3] Testemunho de Manuel Ambrosio Sánchez Sánchez, em mensagem de correio electrónico, 16-9-2018.
[4] Ibidem.
[6] Fonte: Sophia Austral nº 17, 1er semestre, 2016-1-14, on line [Consultado em 23-9-2018]
[7] Anteriormente houve uma versão em Carviçais, Torre de Moncorvo, com a curta duração de dois anos.

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